A corajosa folia carioca deu lições aos políticos
Seria impensável imaginar, há alguns poucos anos, que uma escola de samba do Grupo Especial apresentasse um tema que mexe tantos preconceitos.
Nascidas de favelas vizinhas na região de São Cristóvão, as escolas de samba Mangueira e Paraíso do Tuiuti tiveram a coragem de levar para o Sambódromo causas que contrariam a onda conservadora que ameaça afogar boa parte das conquistas civilizatórias.
A Estação Primeira não apenas resgatou a cultura banto presente no Rio de Janeiro, tratou de fazer ligação entre a herança desses povos com o presente e o futuro, mostrou como o apagamento de tantas tradições é resultado de um projeto de poder que procura manter e renovar formas de dominação.
O açoite que encontrava seu lugar no lombo dos escravizados virou a bala disparada, principalmente, na direçao de corpos de negros. O enredo da Mangueira ressaltou o povo banto que floresce nas vielas das favelas, que há uma dívida imensa a ser resgatada.
O Tuiuti foi ainda mais ousado ao adotar como enredo a história de Xica Manicongo, tida como a primeira travesti não indígena da história do Brasil. Seria impensável imaginar, há alguns poucos anos, que uma escola de samba do Grupo Especial apresentasse um tema que mexe tantos preconceitos — a causa trans demorou para entrar na pauta até mesmo de muitos movimentos de defesa de homossexuais.
A associação entre travestis e prostituição — algo reforçado pela dificuldade dessas mulheres no mercado de trabalho formal — contribuía para o aumento do preconceito. A dualidade presente num corpo originalmente masculino transformado em feminino ainda amedronta muita gente.
De uma maneira menos contraditória do que complementar, são corpos que mexem com desejos negados e combatidos, que muitas vezes emergem numa violência nascida da repressão, válvula de escape encontrada pelo agressor. Socos e chutes ligados à lógica do "Proteja-me do que quero", uma das frases projetadas em locais públicos pela artista plástica norte-americana Jenny Holzer, que mostrou seu trabalho no Rio no fim dos anos 1990.
O Tuiuti ressaltou algo que deveria ser visto como simples: um ser humano é um ser humano, independentemente de suas características. Um princípio que, porém, tem sido cada vez mais acompanhado de exceções.
A imagem de Pixulé — puxador/intérprete do samba do Tuiuti — travestido, maquiado, com unhas longas, é uma das mais representativas do Carnaval.
Ele ali não representava uma caricatura de travestis, mas incorporava um desafio, o de se vestir de mulher para se adequar ao enredo. Não é pouco, num universo tão machista quanto o do samba — que, olha a contradição aí, gente! — é também um dos poucos que, historicamente, dá poder a homossexuais. É só ver a quantidade de carnavalescos gays presentes nas escolas.
Os exemplos de Tuiuti e Mangueira reforçam também a covardia dos políticos que, assustados pela pauta conservadora de inspiração religiosa, buscam conciliar com o que é não pode ser admitido. É legítimo e, mesmo, necessário, gerar discussões sobre modelos econômicos, maior ou menor presença do Estado na economia, mais ou menos impostos.
Mas não se pode transigir com a intolerância a direitos básicos de cada um de nós, o que também inclui a expressão religiosa. O medo do enfrentamento revela oportunismo e cumplicidade com a opressão. A extrema direita só conseguiu vitórias, no Brasil e em outros países, por ter insistido em suas pautas, no convencimento dos cidadãos.
O aumento, nos últimos anos, dos enredos lastreados na religiosidade de origem africana está diretamente ligado à violência sofrida por candomblecistas e umbandistas.
Nascidas nos quilombos urbanos das favelas, sabedoras da herança do preconceito e da discriminação, as escolas entenderam que não poderiam ficar caladas. Agora, dão passos à frente e tratam de abrir espaço para uma política que, por covardia institucional, tenta escapar de suas próprias causas.