No momento em que a Justiça civil prende colegas de farda da maioria de integrantes do Superior Tribunal Militar, a corte dá um recado para a sociedade: militares podem fazer o que bem entendem, inclusive matar paisanos — como eles nos chamam.
O STM reduziu de maneira radical as penas dos oito militares do Exército que, em 2019, mataram o músico Evaldo Rosa e o catador de latas Luciano Macedo — os dois eram negros.
Não é à toa que investigados pela tentativa golpista tentam tirar seus casos do Supremo Tribunal Federal e levá-los para o tribunal militar. Neste, dos 15 ministros, dez são oficiais-generais das Forças Armadas.
O assassinato de Evaldo e de Luciano é um dos daqueles fatos que, de tão escandalosos e evidentes, dispensariam análises e comentários. Mas a impunidade consagrada pelo STM exige que o tema seja ressaltado.
A descrição é clara: os oito Exército disparam 257 tiros na direção do carro, que circulava por uma via pública, no bairro carioca de Guadalupe, onde estava o músico. Ele e o catador de latas, que passava por lá, foram mortos. Os militares disseram que confundiram o carro — atingido por 62 tiros — com o de bandidos.
Num primeiro julgamento, em 2021, o tenente Ítalo da Silva Nunes, que comandava o grupo, foi condenado a 31 anos e seis meses de prisão; os demais, a 28 anos. A 1ª Circunscrição Judiciária Militar os considerou culpados por homicídio doloso: quando há intenção de matar ou quando os acusados cometem atos em que assumem o risco de cometer crime, o que caracteriza dolo eventual.
O STM, mesmo diante do fato de que os militares disparam 257 tiros sem que houvesse qualquer tipo de reação das vítimas, reclassificou o crime para homicídio culposo, não intencional. As penas foram reduzidas para três anos e três anos e seis meses de detenção. São tão baixas que ninguém vai ser preso.
Oito, dos 14 ministros que votaram, concordaram com a tese do relator, Tenente-Brigadeiro do Ar Carlos Augusto Amaral Oliveira. Segundo o oficial, os tiros que mataram as vítimas teriam ocorrido durante confronto com bandidos que realizavam um assalto.
Para ele e outros sete colegas, pessoas que disparam tantos tiros em inocentes que passam por uma rua não podem sequer ser condenados por dolo eventual. Esses oito integrantes do STM também consideram razoável a quantidade de munição gasta para combater um suposto assalto ou prender um eventual bandido.
O temporal de balas reforça o despreparo das nossas FFAA. O uso, de maneira imprudente, amadora e irresponsável de tamanha quantidade de munição permite imaginar o gasto que o país teria com a compra de cartuchos caso estivéssemos numa guerra.
O Ministério Público Militar tem a obrigação de recorrer da sentença do STM, mas o caso, revelador do corporativismo dos fardados, não pode se esgotar no processo. É preciso mudar as atribuições da Justiça Militar. Os condenados mataram civis que circulavam por uma rua, eles não estavam num quartel.
O Exército alega que, pela próximidade de algumas de suas instalações, a região é considerada área militar. Que seja, mas não se trata de local fechado, de acesso restrito e controlado. Civis foram fuzilados quando exerciam seu direito cidadão de ir e vir, não importa que tenham sido mortos por militares.
A conciliação ocorrida no processo de redemocratização viabilizou a permanência de heranças malditas da ditadura, entre elas, a possibilidade de militares julgarem casos que envolvam civis e que não tenham qualquer ligação com questões da caserna.
Reduzir as funções do STM, que tanto chancelou crimes cometidos pelos governos militares, é uma das tarefas necessárias para civilizar o país.