Só um deputado do sexo masculino — alguém incapaz de engravidar — poderia propor uma emenda à Constituição que condena à morte meninas e mulheres que, para salvar suas vidas, são obrigadas a interromper a gestação.
Apenas a desumanidade gerada pelo oportunismo religioso, pela cegueira ideológica e pela necessidade de abafar a revelação da trama golpista explica que algo tão abjeto tenha sido admitido pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara.
Proposta pelo então deputado Eduardo Cunha — aquele, aquele — a PEC inclui na Constituição a inviolabidade do direito à vida desde a concepção. Na prática, revoga a validade do que está previsto há 84 anos pelo Código Penal, o direito à interrupção da gravidez em caso de estupro ou de risco de vida para a gestante. Em abril de 2012, o Supremo Tribunal Federal passou a permitir o aborto em caso de fetos com anencefalia: no início do mês seguinte, Cunha apresentou sua PEC.
Um tema tão delicado como o aborto não pode ser tratado de maneira tão irresponsável. São respeitáveis os argumentos dos que, por razões éticas ou religiosas, acreditam que uma nova vida passa a existir no momento da concepção, ainda que o sistema nervoso do feto só venha a ficar completo meses depois.
Mas o sentido de humanidade exige relativizações. Não é razoável que a maioria dos deputados da CCJ favorável à admissão da PEC não tenha pensado no que faria caso a interrupção da gravidez fosse a alternativa para salvar a vida de sua mulher, filha ou namorada. Ou se acharia razoável ver uma delas na condição de mãe de filho de estuprador.
Não é razoável também obrigar uma mulher a carregar no seu corpo um feto que morrerá ao nascer por anencefalia. Uma gravidez embalada pelo luto, que impede a gestante de preparar um quarto para seu filho, comprar roupinhas e berço.
Parlamentares que tanto pregam pelo valor absoluto da vida costumam ser os mesmos incapazes de demonstrar qualquer solidariedade com crianças acusadas de cometer crimes, muitos toleram a instituição de uma ditadura que mata e tortura.
Entre eles certamente haverá os que cometeram desvios que abreviaram a vida de gente que morreu vítima de falta de comida ou de assistência médica. A PEC ainda inviabiliza tratamentos como fertilização in vitro e pesquisas com células-tronco.
Aborto não é e não pode ser encarado como um meio de controle de natalidade — sequer é visto assim por defensores de sua legalização —, mas é algo que existe, faz parte da vida.
É bem provável que você, leitor, já tenha sido informado que uma parente ou amiga tenha recorrido à interrupção de uma gravidez. Caso um caso desses tenha chegado ao seu conhecimento — e trato aqui apenas de abortos ilegais ——, você denunciou a mulher e a clínica como certamente faria num caso de homicídio? Se não tiver tomado esta atitude, terá demonstrado que, na prática, não concorda com a equiparação de aborto com assassinato, não acha que aquelas mulheres mereciam cadeia.
Assim como em tantos outros casos, muitos brasileiros preferem tratar o tema do aborto com hipocrisia. Em 2021, 150 mil mulheres foram internadas no país para tratar consequências de abortos, quase todos ilegais.
No mesmo ano, foram abertos apenas 333 processos judiciais para apurar e punir os responsáveis pelo o que o Código Penal classifica de crime contra vida: isso representou 0,22% dos atendimentos médicos oficialmente registrados em hospitais (ficaram de fora os milhares de outros casos que não geraram maiores complicações).
É improvável que a tal PEC seja aprovada, mas só o fato de ela tramitar demonstra a insensibilidade dos que se mostram incapazes de encarar com seriedade um tema complexo e doloroso. Não se pode optar pela hipocrisia dos que se fingem de honestos e pagam propinas ao guarda de trânsito.