Golpe não é anistiável

A punição a todos que de alguma forma participaram da tentativa golpista é fundamental para que nunca mais o país volte a flertar com uma interrupção da democracia

Por Fernando Molica

Articuladores do golpe usaram mentiras para estimular manifestantes

Os defensores da anistia para os que tentaram dar um golpe de Estado procuram omitir a gravidade dos crimes cometidos pelos que articularam, estimularam, financiaram e atuaram para implantar uma nova ditadura no país. O 8 de Janeiro não pode ser reduzido a um desvario de idosos de Bíblia nas mãos.

Não dá pra anistiar os que invadiram e depredaram sedes de poderes, foram para a frente de instalações militares para tentar subverter as Forças Armadas, elaboraram interpretações falsas da Constituição, quase mataram policiais, rechaçaram o resultado das urnas, patrocinaram as movimentações, interromperam estradas, quase explodiram um caminhão-tanque no aeroporto de Brasília. 

O 8 de Janeiro não foi algo isolado, mas o resultado de um processo. Ainda é preciso apurar o papel efetivo do então presidente Jair Bolsonaro no golpe, mas é inegável que muitas pistas apontam para ele e para auxiliares diretos, como o general Braga Netto e o almirante Almir Garnier Santos, que comandava a Marinha.

Estes, de acordo com as investigações, tiveram papel decisivo na trama golpista, mas muitos outros militares, entre eles, oficiais-generais, foram, na melhor da hipóteses, coniventes com a tentativa de quebra da institucionalidade.

Nada pode justificar a insistência com que o então ministro da Defesa, general Paulo Sérgio Nogueira, desacatou a Justiça Eleitoral. A permissão para que manifestantes ocupassem áreas militares, diante de quartéis, para pedir golpe não pode ser banalizada. 

A punição aos que participaram da tentativa golpista é fundamental para que nunca mais o país volte a flertar com a quebra da democracia. As quarteladas, presentes em toda a história republicana, precisam ser descartadas e isso só ocorrerá com o julgamento, condenação e cumprimento de pena por parte dos culpados, civis ou militares.

É preciso que todos passem a pensar nas consequências de seus atos. Já passou da hora de o país acabar com a lógica que faz com que funcionários públicos fardados achem, há mais de um século, que encarnam uma espécie de consciência moral da Nação e que, portanto, podem impor suas vontades com as armas que lhe foram entregues pela população. 

Nos dois últimos anos do mandato de Bolsonaro, o país voltou a ser assombrado pelo fantasma da tutela militar. É só conferir a quantidade de notas oficiais em que comandantes das Forças Armadas reiteravam suposto compromisso com a democracia. Numa democracia enraizada, militares sequer ousam emitir documentos desse teor, isso é impensável em países como Estados Unidos, França, Reino Unido e Portugal.

Mais do que ameaçar a posse de um presidente eleito, a trama golpista representou uma ameaça à liberdade de pensamento e à integridade física de milhões de brasileiros — é só ver o que ocorre na Venezuela. O exemplo do país vizinho reforça que a democracia precisa ser defendida independentemente do viés ideológico dos governantes.

Por lá, o chavismo conseguiu algo recentemente ensaiado por aqui, a cooptação das mais altas patentes militares, um processo que hoje garante a ditadura de Nicolás Maduro, que agora tenta se consolidar com a fraude eleitoral.

É razoável discutir penas aplicadas a alguns dos condenados, mas vale lembrar que as punições mais pesadas tiveram como base artigos de lei sancionada por Bolsonaro. Preveem até oito e doze anos de cadeia para os que tentarem — basta tentar —, com emprego de violência ou grave ameaça, respectivamente, abolir o Estado Democrático de Direito e depor governo legitimamente constituído. O artigo que pune quem incita militares contra os poderes constitucionais também está nessa lei, que precisa ser cumprida.