Perdi minha identidade

Como no samba "Cartão de identidade", de Jorge Carioca e Djalma Crill, há algumas décadas que, ao recitar aqueles nove números, eu mostrava minha identidade pra toda gente

Por Fernando Molica

Modelo da nova carteira de identidade

Ao conferir minha nova carteira de identidade descobri que perdera o número que me acompanhava desde os 15, 16 anos. Isso porque o governo federal decidiu que cada brasileiro tem que ser reconhecido por uma única combinação numérica.

Isso inviabilizou a manutenção daqueles algarismos que nos haviam sido atribuídos por estados ou Distrito Federal, passíveis de serem repetidos pelos diferentes órgãos que emitiam os antigos documentos. 

A solução encontrada foi consagrar o CPF, uma saída óbvia, mas esquisita: o Cadastro de Pessoas Físicas, imposto pela Receita Federal, remete a alguém vinculado à máquina de arrecadação de impostos e/ou de recebimento de benefícios. 

Os cartórios que emitem certidões de nascimento são chamados de registros civis de pessoas naturais — ou seja, não são apropriados para robôs e que tais. Se os cartórios só aceitam registrar pessoas naturais, por que a nossa identidade tem que ser associada a uma condição não natural, a de pagador de impostos? 

Como no samba "Cartão de identidade", de Jorge Carioca e Djalma Crill, há algumas décadas que, ao recitar aqueles nove números, eu mostrava minha identidade pra toda gente. De certa forma, eu era aquele número que decorei ao fazer o vestibular: o medo de errar na hora de preencher a ficha era tamanho que repeti várias vezes a combinação de algarismos.

O CPF veio depois. Essa outra forma de identificação não era tão banal. Representava uma espécie de entrada na vida adulta e no mercado de trabalho; no caso dos homens, vestia uniforme ou terno e gravata.

Lembro que o número definido pela Receita era impresso num cartão específico, o CIC, Cadastro de Identificação do Contribuinte.Ter um CPF num CIC era um sinal de que aquele rapaz ou aquela moça tinha crescido, já labutava, seria obrigado(a) a declarar imposto de renda. 

Há uns 20 anos, a proposta de adoção de um número único de identificação foi abortada pela pressão de grupos que viam na iniciativa uma forma de controle estatal sobre o cidadão. Mas a internet e as redes sociais tornaram o argumento obsoleto, nós mesmos tratamos de entregar praticamente todos os nossos dados para governos e grandes empresas.

E, assim, os tais nove algarismos foram perdendo a razão de ser e acabaram jogados na lata do lixo da burocracia pátria. Vão continuar vivos em alguns formulários e contratos, como um paciente terminal que respira por aparelhos. Mas, aos poucos, perderão utilidade e sentido; ficarão, no meu caso, associados ao garoto de cabelos castanhos, fartos e encaracolados que formavam uma espécie de escultura sobre a minha cabeça.

Adeus, querido companheiro que confirmou minha existência ao longo de tanto tempo. Você acabou derrotado por uma espécie de primo rico e fortão, mais ligado ao nosso bolso do que à nossa existência física — era previsível que se tratava de uma batalha perdida.