Prefeito de São Paulo e candidato à reeleição, Ricardo Nunes (MDB) tem o direito de questionar a validade do estudo que aponta para a existência de 80 mil pessoas vivendo nas ruas da cidade - mas não dá para negar que por lá e por aqui, no Rio, tem gente demais dormindo nas calçadas. Uma realidade, suponho, que se reproduz Brasil afora.
Não se trata apenas dos que estão numa situação que os obriga a permanecer nas ruas. Há aqueles que têm algum abrigo permanente mas que estão por aí pedindo dinheiro, vendendo um doce, oferecendo serviços desnecessários como a limpeza de para-brisa nos sinais de trânsito.
Arrisco dizer ser impossível que você, que está lendo este artigo, não tenha sido abordado por alguém lhe solicitando algum trocado nas últimas vezes em que botou o pé na rua ou se sentou num bar numa calçada. No Rio, há uma espécie de revezamento de pedintes à porta de uma livraria em Botafogo.
Nem de longe proponho algum de tipo de ação para retirar esses compatriotas das ruas que são tão deles quanto minhas. Ao contrário, é preciso que a sociedade encare essas pessoas não como incômodo, mas como sinais evidentes de nossos fracassos.
Não dá pra achar normal ver tanta gente assim nas ruas, não é razoável que crianças em idade escolar sejam expostas desse jeito. Há muitos anos, um colega que morou na França nos anos 1970 - seus pais eram exilados - me contou que o plano dele e de um amigo de matar aula para dar volta em Paris foi abortado por uma razão simples: um policial estranhou que aqueles dois moleques estivessem na rua em horário escolar.
Como o ensino por lá é em horário integral, não havia razão para que dois pré-adolescentes estivessem zanzando pela cidade num dia útil, sem a companhia de adultos. Os dois foram devidamente acolhidos pela polícia que os levou para suas casas - e passou um sabão em seus pais.
Chega ser impressionante como tudo ocorreu de forma simples a partir de uma decisão de política pública: o ensino em horário integral. Além de todas as outras vantagens, essa medida permitiria que, a exemplo do que houve no caso do meu amigo, o poder público identificasse qualquer criança fora da escola.
Em 2010, o prefeito Eduardo Paes sancionou uma lei aprovada na Câmara Municipal que implantava de forma gradual uma medida necessária, mas ainda modesta - um turno único de sete horas. A cada ano, dez por cento do contigente de alunos das escolas públicas municipais passaria a ter essa jornada - em 2021, todos teriam essa carga horária.
Como o objetivo não atingido, adotou-se uma solução bem brasileira. Em 2022, a Câmara aprovou outra lei, igualmente sancionada pelo mesmo prefeito, que prorrogou para 2031 o prazo de adoção do turno único. Simples assim.
Muito focados na vida institucional - governos, parlamentos, entidades da sociedade civil - até mesmo nós, jornalistas, tantas vezes esquecemos de olhar mais para as ruas, para a vida que se desenvolve nas calçadas. É fundamental citar a pesquisa do Observatório Brasileiro de Políticas Públicas com a População em Situação de Rua, da Universidade Federal de Minas Gerais, que trata dos 80.369 brasileiros que não têm onde morar na cidade mais rica do país.
Temos que publicar dados sobre aumento/redução da pobreza, tratar de índices de desemprego, falar dos avanços (poucos) e retrocessos (muitos) na educação. Mas é preciso que essas pessoas tenham nomes, histórias. Não basta minorarmos nossos desconforto ou culpa estendo-lhes uma nota de dois ou de cinco reais, nem adotar a prática de, nas ruas, andar em zigue-zague para fugir da abordagem dos miseráveis.
Estamos a menos de duas semanas da eleição para prefeitos e vereadores. Fala-se muito de descriminalização de drogas e do aborto (temas do Congresso Nacional), de socos, de cadeiradas, de Lula e de Bolsonaro - e tratamos muito pouco da realidade que está diante dos nossos olhos. Cabe à sociedade escolher suas pautas.