O ex-presidente americano Donald Trump pegou uma mentira emprestada de seu apoiador Jair Bolsonaro ao afirmar que, na cidade de Springfield, em Ohio, imigrantes ilegais famintos estavam roubando cães e gatos para comer.
Em 2022, o então presidente brasileiro citou a inverdade para condenar o rígido isolamento social imposto pela prefeitura petista de Araraquara (SP), medida tomada para evitar a propagação do coronavírus: "Lá, inclusive, o pessoal comeu cães e gatos, porque não tinha o que comer". Dois meses depois, Bolsonaro voltou ao tema.
Ao ser desmentido pelo apresentador David Muir, um dos mediadores do debate entre o republicano e a democrata Kamala Harris, Trump relativizou o que dissera, afirmou que tinha visto a notícia na TV.
O uso desse tipo de fake news está longe de ser uma coincidência. Não é novidade que correntes políticas usem argumentos e teses semelhantes em diferentes países. A ascensão da extrema direita nos últimos anos, porém, indica a existência de uma espécie de concertação de pautas: há as, digamos, programáticas, como a condenação à legalização do aborto, e as baseadas num tipo de desinformação sedutora e sofisticada, que trabalha com os medos e desconfianças humanos. Uma prática facilitada pelas redes sociais, que amplificaram e deram um certo selo de credibilidade aos boatos.
Neste pacote estão, por exemplo, as campanhas que desacreditam as vacinas. É algo tão impressionante que, em fevereiro de 2021, o neste caso insuspeitável Benjamin Netanyahu, primeiro-ministro de Israel, gravou um vídeo para estimular a vacinação contra a Covid 19. Nele, contracenava com um comediante e tratava de desmentir mentiras que associavam o imunizante a mudanças no DNA, à implantação de chips, ao crescimento de uma cauda como a de animais.
Ou seja, as fake news disseminadas em Israel eram basicamente as mesmas espalhadas por aqui, inclusive pelo então presidente, que chegou a citar a possibilidade de virar jacaré, de mulheres passarem a ter barba e de homens começarem a "falar fino".
Os cães e gatos criados pelos tutores Bolsonaro e Trump nasceram nos mesmos canil e gatil: servem para reafirmar temores, fazem companhia às assombrações que tiram o sono de tanta gente infantilizada, estimulam o preconceito e o ódio ao desconhecido e ao diferente.
No debate da noite de anteontem, a vice-presidente Kamala Harris atuou como o adulto que afasta fantasmas ao acender a luz do quarto dos filhos. Cortou o discurso trumpista baseado na interminável atribuição de todos os males aos imigrantes ilegais — chega a ser impressionante como o ex-presidente recorre ao assunto para tratar de qualquer problema. Questionado sobre seu estímulo ao ataque do Capitólio no 6 de Janeiro, relativizou o problema, disse que era menos grave que a ida de imigrantes para os Estados Unidos.
Uma grande sacada da democrata foi reelaborar o mote trumpista de fazer a América grande outra vez. Ela se apropriou do sentido do slogan ao dizer que o país será melhor e mais próspero se os cidadãos tiverem novas oportunidades para melhorar de vida. Focou não nos imigrantes, mas nos americanos, na lógica do sonho que embala gerações de conterrânos. De maneira didática, falou que a solução precisa ser buscada entre eles, não na demonização do outro.
Ao jogar luz numa discussão contaminada pelo preconceito e pela busca de fórmulas simples e equivocadas, Kamala indicou um caminho maduro e responsável, que escapa das fantasias criadas para atemorizar. E, por falar nisso: Springfield é o nome da cidade dos Simpsons, nem o Homer, um devorador de donuts que não prima pela inteligência, deve ter acreditado nessa história de gente que come cachorros e gatos.