Criticar as decisões de Alexandre de Moraes relacionadas a empresas de Elon Musk é mole; o complicado é encarar os chefões do tráfico e da milícia que, como mostrou reportagem de O Globo, cortaram o acesso a internet de diversos bairros do Rio e de Niterói.
Nesses locais, o X da questão é outro, bem mais grave, revela, de novo, a incapacidade do Estado brasileiro de garantir soberania em nosso território.
Há mais de uma década que bandidos impõem a moradores de favelas o que a criatividade carioca apelidou de gatonet, o acesso ilegal a canais por assinatura.
A evolução tecnológica e a diversificação de negócios permitiram que a conexão à rede mundial de computadores também tivesse que passar pelas mãos criminosas.
Diferentemente do auê em torno das decisões vindas do Supremo Tribunal Federal, a sociedade de um modo geral e políticos em particular pouco se mobilizaram contra o fato de narcomilicianos cortarem o acesso legal não apenas ao X, mas ao Facebook, ao Instagram, ao Gmail, a qualquer site.
Fizeram isso como já controlavam a venda de botijões de gás e de cestas básicas. Mas as reações ficaram na base do ora veja só, do puxa vida, do onde é que vamos parar.
Nesses casos, não se fala em ameaça à liberdade de expressão, em ataque à cidadania, em restrição de direitos, em ditadura. Ninguém pede impeachment de bandido, nem de governantes que assistem de forma passiva o avanço sobre o território que deveria ser controlado pelo Estado.
Decisões judiciais podem ser contestadas. Moraes, que teve um papel fundamental na manutenção da democracia, volta e meia ultrapassa limites, como no caso de medidas que implicam em censura prévia a usuários de redes sociais. Mas há caminhos institucionais para se recorrer de suas canetadas, ninguém vai ser morto por isso.
O problema é o silêncio em torno de um poder de fato e sem rosto, contra o qual não há instrumentos legais disponíveis. Ou algum morador de bairro afetado pelas medidas abusivas de criminosos vai usar o Código de Defesa do Consumidor contra bandidos armados?
Muito da indignação seletiva está relacionada ao fato de os principais prejudicados serem moradores de favelas ou de bairros pobres, onde há uma relativização das garantias constitucionais e do Código Penal — na manhã de ontem, 60 escolas na Região Metropolitana do Rio estavam fechadas por tiroteios provocados por operações policiais ou guerras entre bandidos.
Todas essas escolas fechadas ficam em favelas ou no seu entorno. Algo dessa dimensão jamais aconteceria em bairros nobres da cidade, assim como não se imagina — pelo menos, por enquanto — a possibilidade de que moradores dessas áreas sejam obrigados a comprar pacotes de dados da narcomilícia.
O que vale para um lado da cidade tem que valer para o outro. Não se pode achar razoável que cidadãos tenham sua liberdade limitada pela ação de bandidos, restrições que só são possíveis graças à conivência de agentes do Estado, não apenas policiais.
Por uma dessas ironias brasileiras, o caso de Musk acabou, por vielas tortas, esbarrando com o de moradores oprimidos pela narcomilícia fluminense. Para fugir ao controle dos bandidos que impedem o acesso a provedores tradicionais, que utilizam cabos, cidadãos recorrem à Starlink do bilionário também dono do X. A conexão, neste caso, é fornecida via satélite, o que dribla a vigilância dos marginais.
No fim das contas, para escapar da ilegalidade imposta pelo crime, esses cidadãos buscam uma empresa que teve suas contas bloqueadas por Moraes. A Starlink ainda pode até ser proibida de operar no país porque seu dono se recusa a se submeter às leis brasileiras.