Por: Fernando Molica

Derrotas humanizam campeãs

Se havia dúvidas, agora não há mais: com seis medalhas olímpicas, Rebeca é a número 1! | Foto: Alexandre Loureiro/COB

Ao ficarem fora do pódio na trave, as campeãs olímpicas Rebeca Andrade e Simone Biles demonstraram, de forma involuntária, os limites de corpos que tanto pelejam para dominar. Entre os esportes, a ginástica artística é o que talvez mais represente a luta do atleta contra ele mesmo; uma percepção que chega a ser contraditória, mas didática. 

No futebol, no basquete ou no vôlei, é preciso vencer o adversário que está no campo ou na quadra, presente. Por mais preciso e eficiente que se seja, o esportista depende de atuação do outro. Um time pode jogar de maneira quase que perfeita e perder — basta que o outro lhe seja superior. Um zagueiro pode impedir um drible aplicado à perfeição, um defensor pode buscar a mais violenta bola jogada em sua quadra.

No atletismo e na natação, o desempenho depende de cada um em sua raia, mas a competição com os demais está ali, todos partem ao mesmo tempo, um tenta saber do outro, sabe que o perigo está ao lado, é preciso vigiá-lo, superá-lo. Há diferentes estratégias para cada prova, mas sempre a partir de algo básico e definidor, não há quase variações em fazer o básico — correr, nadar, saltar.

Na ginástica artística, o atleta desafia o próprio corpo, que precisa ser submetido a um controle que se quer absoluto. Precisa também recorrer à criatividade traduzida numa infinidade de opções de movimentos expressos em nomes complicadíssimos, que remetem aos seus criadores: Stützkehre, Tkachev, Diamidov, Conner.

No centro do tablado, o ginasta trata seu próprio corpo como um cão adestrado, determina que ele salte bem alto, pegue o osso ou bola, sente, deite. Ordens ainda mais cruéis do que as destinadas a animais, depois de muitos anos libertados da tortura que lhes era imposta por domadores e treinadores.

Na ginástica, o próprio atleta define o grau de submissão que irá impor a um corpo não criado para ser submetido a tamanha carga. O esporte de alto rendimento chega a negar o lugar comum que associa exercícios a uma boa saúde. Oscar Schmidt, craque do basquete, repetia que a dor fazia parte do seu uniforme. Os joelhos de Rebeca são testemunhas do peso desproporcional que são obrigados a suportar.

Na ginástica, por mais detalhados que sejam os critérios utilizados, o resultado sempre depende de avaliações subjetivas. Não se trata de chegar na frente do adversário, de marcar mais gols do que ele. Cabe a terceiros avaliarem o resultado daquilo que aqueles jovens fazem com seus corpos; julgarem a concepção de cada série e a eficiência da execução.

Ao tomar a corajosa decisão de abandonar a Olimpíada de Tóquio, Simone revelou que ela é que estava sendo derrotada na disputa entre sua mente e seu corpo. Para brilhar em Paris, foi preciso parar, respirar, tomar fôlego.

A ginástica é assim exemplar da luta que quase todos travamos com nós mesmos, a briga entre nossas expectativas, possibilidades e limites — costumamos ser nossos piores juízes. Como escreveu Nei Lopes no "Samba do Irajá", convivemos com a "Sensação de na verdade/ Não ter sido nem metade/ Daquilo que você sonhou". 

Trabalhadoras exigentes, dedicadas, talentosas, Rebeca e Simone têm todo o direito de ficarem orgulhosas pelas conquistas parisienses, mas também devem estar aliviadas pelos erros que cometeram, em particular, na decisão da trave. Falhas que reafirmaram a humanidade presente em cada uma delas, em todos nós. Nosso corpo nos salva ao criar limites.

A americana, literalmente, caiu de pé; horas depois, ela e a companheira de equipe, Jordan Chiles, bronze no solo, reverenciaram Rebeca. Homenagem merecida, que veio de outras mulheres pretas como a brasileira, que sabem como é dura a luta de todas elas. Na saideira, Simone resumiu: "Todas nós precisamos relaxar".