Por: Fernando Molica

Na lama, as pegadas da boiada

Chuva inundou ruas de Canoas (RS) | Foto: Foto: Ricardo Stuckert / PR

É necessário apurar se decisões do governador gaúcho, Eduardo Leite (PSDB), ajudaram a agravar o tamanho da tragédia que ocorre no estado, mas ele agiu respaldado por boa parte da sociedade local.

Sua nova eleição para o governo ocorreu quase três anos depois de ele sancionar as 480 mudanças no Código Ambiental que, entre outros pontos, amenizaram exigências para o licenciamento de novas atividades econômicas, criaram até um autolicenciamento.

O projeto de lei que, em setembro de 2019, ele, em regime de urgência, enviou para a Assembleia Legislativa com a redação do novo código foi aprovado menos de três meses depois com uma confortável maioria de 37 votos a 11.

A grita de ambientalistas contra a proposta foi grande, mas não adiantou. Francisco Milanez, então presidente da Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan), classificou o projeto de "desestruturante, destruidor e prostituinte". Várias entidades assinaram um documento em que criticavam o projeto.

A Federação das Indústrias do Rio Grande do Sul, porém, elogiou as mudanças. Afirmou que a nova lei trazia "clareza e segurança jurídica evitando a subjetividade, o que no modelo anterior deixava margem para amplas interpretações e conflitos com normas nacionais". Frisou que a atualização do código contribuia para "a desburocratização do processo de licenciamento ambiental visando torná-lo mais ágil". 

Em 2018, o programa de governo de Leite para a questão ambiental priorizava a ligação do tema com o desenvolvimento econômico. Falava que inovar na na área ambiental era "dar agilidade e eficiência nos processos de licenciamento; instituir mecanismos e regras mais claras para que o empreendedor saiba exatamente o que precisa fazer e onde poderá desenvolver seu negócio".

Seu adversário no segundo turno, o então governador José Ivo Sartori (MDB), foi na mesma linha: disse que seu objetivo era "aliar desenvolvimento e cuidado com meio ambiente". Destacou que havia reduzido o tempo de concessão de licenças, "seguindo rigorosamente a legislação ambiental".

Quatro anos depois, Leite, em seu programa entregue à Justiça Eleitoral, elogiou as mudanças feitas no Código Ambiental, citou de maneira genérica a necessidade de atualização de "instrumentos de mapeamento e monitoramento das sensibilidades ambientais". Ressaltou a necessidade de combate à seca que comprometia a agricultura, mas não tratou de enchentes.

Onyx Lorenzoni (PL), que seria derrotado por Leite no segundo turno, foi ainda mais econômico ao tratar do tema. O material que pode ser visto no site do Tribunal Superior Eleitoral afirma que o produtor brasileiro "é o que mais preserva no mundo". Afirmou que iria "valorizar, incentivar, repeitar e ouvir quem produz, invertendo a lógica dominante nas últimas décadas".

É compreensível que num estado tão dependente da agropecuária — responsável por 40% do PIB gaúcho —, a preservação do meio ambiente possa ser, em alguns momentos, vista como inimiga do desenvolvimento. Cabe, porém, aos políticos mostrarem o risco representado pela falta de cuidados com a terra. A enchente que maltrata os gaúchos e comove o país indica que a lama ser vista depois que as águas baixarem apresentará pegadas da boiada criada pela legislação.

Pesquisa divulgada ontem pela Quaest mostra que, para 99% da população brasileira, as mudanças climáticas são em parte ou totalmente ligadas às enchentes. É bom que negacionismo seja golpeado, mas é uma pena que isso só tenha ocorrido depois de algo tão trágico. A enchente vai acabar, a vida, de um jeito ou de outro, será retomada no Rio Grande do Sul, mas a memória da catástrofe precisa ficar viva, até para tantos erros sejam corrigidos.