Por: Fernando Molica

Um país que dá gastura

Brasília (DF) 08/05/2024 – Base aérea de Brasília recebe doações para os atingidos das chuvas no estado Rio Grande do Sul. Foto: Joédson Alves/Agência Brasil | Foto: Joédson Alves/Agência Brasil

A disseminação de mentiras sobre entrega de doações a vítimas da enchente no Rio Grande do Sul demonstra que nem o inferno se constitui num limite para a indústria de fake news.

O fato indica que o país perdeu qualquer noção ética, parece uma alma penada que fica por aí, assombrando todos que buscam algum projeto sério de construção de uma sociedade minimamente justa e decente. É triste demais, algo que gera descrédito, desânimo, gastura, dá vontade de jogar a toalha, de pedir pra sair.

Desta vez, os sujeitos, entre eles, políticos, chegaram a espalhar que o governo do Rio Grande do Sul exigia nota fiscal de produtos destinados a pessoas que tiveram parte de suas vidas levadas pela água. Outros denunciaram como sendo falsos códigos de PIX criados para ajudar desabrigados.

Mentir de maneira descarada para obter vantagens políticas e eleitorais já é um absurdo que precisa ser punido, mas sabotar a entrega de água, alimentos, produtos de limpeza e roupas para flagelados representa um inimaginável grau de sordidez e maldade — deixo para o leitor a tarefa de selecionar os palavrões que considerar adequados para definir a prática.

A partir da campanha eleitoral de 2018, boa parte do país acolheu e banalizou o fenômeno das notícias fradulentas, informações falsas criadas com o objetivo de difamar adversários. Fatos que de tão estapafúrdios que sequer deveriam ser levados a sério por adultos.

As fake news, porém, trabalham com uma ideia bem elaborada de criar verossimilhança, de procurar atestar o que é falso, jogam no campo da fé, seduzem ouvidos ao neles gritar o que eles gostariam de ouvir: e aí vale atribuir a filhos de Lula a propriedade da JBS, da maioria das ações da Petrobras, de latifúndios, de uma Ferrari dourada. Em meio ao pega-mata-come do auge da Lava Jato, mentiras que pareciam sinceras interessavam a muita gente.

O mesmo serve para distorções grosseiras de fatos: uma política de não discriminação de crianças e adolescentes é apresentada como kit gay, o avanço de processos de inclusão dá margem à invenção de que haveria uma política de instalação de banheiros unissex em escolas — o medo, o preconceito e a ignorância asfaltam o caminho para o que é produzido em gabinetes de ódio.

Um processo tão leviano que dificulta até mesmo a propagação de notícias verdadeiras — a redudância aqui se faz necessária — sobre adversários políticos. A mentira é sempre mais sedutora, tem o poder de fazer com que seu portador seja visto como alguém especial, que sabe dos segredos, que tem um amigo-primo-tio-sogro-sogra-parente em Brasília que conhece todos os os segredos da República, aqueles que a tal emissora de TV não mostra.

O viés conspiratório empresta credibilidade à invenção, satisfaz o apetite de quem deseja algum motivo para renovar o ódio contra seu adversário ou inimigo, há sempre um diabo pronto para ser escalado e entrar em campo. 

Tudo isso cansa.  Todos temos o direito de rejeitar ou mesmo detestar esse ou aquele governante, mas é razoável que esses sentimentos sejam respaldados em fatos, não em invenções criadas por aqueles incapazes de trabalhar de maneira séria na política. Isso desqualifica até mesmo a oposição.

Não é razoável adaptar fatos para que eles se encaixem no mundo que idealizamos. Não é admissível que, diante de mais uma de uma centena de mortes e de desaparecidos, de pessoas desabrigadas, de crianças separadas de seus pais, que redes criminosas de desinformação atuem com tamanha desfaçatez.

Obs: já tinha concluído este artigo quando soube, à noite, dos casos de abusos sexuais contra mulheres, entre elas, adolescentes, em abrigos improvisados para vítimas da enchente. Mais do que gastura, dá nojo, raiva e vergonha.