Por: Fernando Molica

Mudança ameaça desfiles

Mangueira faz 95 anos e lança título do enredo em homenagem a Alcione | Foto:

Ao forçar a barra para transformar o desfile do Grupo Especial em evento voltado quase que exclusivamente para o lucro, a Liesa abre caminho para que os componentes das escolas exijam remuneração —  afinal, são cada vez mais encarados como peças de decoração de camarotes no Sambódromo. A busca de arrecadar mais dinheiro com a comercialização desses espaços é o que justifica a decisão de fatiar em três noites a apresentação das grandes agremiações. 

Há cerca de 30 anos, Gilberto Gil chamou a atenção para o caráter devocional das escolas de samba. Isso é o que gerou e mantém a festa, o que estimula dezenas de milhares de pessoas a participarem dos cortejos sem cobrar cachê — entre as que desfilam são pouquíssimas as que recebem remuneração. Se deixar de ser ritual para virar apenas um espetáculo comercial é justo que todos os artistas recebam uma grana, o que inviabilizaria o evento — daria zebra, para uma usar imagem bem conhecida na Liesa.

O crescimento das agremiações incluiu o patronato de bicheiros e a transferência de parte do poder para pessoas estranhas às comunidades, como carnavalescos e coreógrafos. Mas isso não eliminou o fundamental: as escolas ecoam e representam comunidades negras e pobres que, há um século, fazem do Carnaval o momento de exibição de sua arte, capacidade de organização e força.

Escolas, especialmente as do Rio, cresceram graças também à sua capacidade de estabelecer relações com a sociedade e com os poderes, formais ou informais, legais ou ilegais. Isso permitiu que conquistassem pessoas de fora das favelas, arregimentassem torcedores por todo o país. 

Por mais explícitas que sejam as ligações de muitas delas com mafiosos do crime organizado, escolas mantêm seus poderes. Financiadores, mesmo vitalícios como Anísio, pai e patrono de Gabriel David, novo presidente da Liesa, são muito menores que as instituições que criaram o desfile. Eles precisam mais delas do que o contrário.

Ao longo dos anos, escolas se adequaram a exigências de patrocinadores e da TV, não tiveram medo de crescer: o desfile, que começava ao anoitecer de domingo e chegou a terminar no fim da manhã de segunda, foi dividido em dois dias; o tempo de apresentação sofreu sucessivas reduções, as alegorias se agigantaram. Mas foram adaptações que preservaram o espírito da festa e da disputa.

Herdeiro da Liesa, Gabriel David chegou como se movido pelos ventos não de Nilópolis, mas da Faria Lima. Imbuído da lógica da balada, propôs a ida dos desfiles para a Barra — o que cortaria a relação do ritual com seu terreiro de origem —, introduziu uma iluminação que esconde componentes, usou espaço usurpado de frisas para aumentar a quantidade de camarotes. Quem vai ao Sambódromo sofre com o batidão da música eletrônica que vaza desses locais e atrapalha os que querem ouvir e cantar os sambas enredos.

Aos 26 anos, Gabriel parece ter bom conhecimento de show business, mas demonstra ignorar regras básicas que formataram o espetáculo que ele ganhou o direito de administrar. Diferentemente do Rock in Rio e do Lollapalooza, o desfile não é uma iniciativa empresarial, mas uma celebração de fé, esperança, beleza e alegria que conversa com a história e os ancestrais, dialoga com o presente e aponta para o futuro.

Ao anunciar o fatiamento do desfile, a Liesa disse que haverá, na pista, atrações não relacionadas às escolas, o que indica pouca confiança no próprio taco. Alvo de críticas pela mudança, a entidade reagiu e, no Instagram, chamou tais penduricalhos de "ativações".

A palavra de viés modernoso demonstra, por si, uma incapacidade de entendimento do que se passa num espaço ativado séculos atrás, quando um dos primeiros escravizados trazidos para o Brasil construiu e tocou um tambor que ainda ressoa entre nós.