Por: Fernando Molica

O didatismo da tragédia

Pistas inundadas do Aeroporto Salgado Filho, em Porto Alegre. | Foto: Divulgação/Fraport

As imagens das estradas gaúchas interditadas e do alagamento do aeroporto de Porto Alegre são didáticas: deveriam servir de alerta para os que se consideram inalcançáveis pelas tormentas.

Na hora de um juízo final que já se anuncia, não haverá como fugir. Os mais potentes SUVs não trafegam sobre pontes inexistentes, jatinhos precisam de pistas para que possam decolar.

A tragédia ressalta a urgência da discussão sobre mudanças no clima e lembram o processo, de um modo geral irresponsável, de construção de nossas cidades.  A situação se repete em praticamente todo o país — as aglomerações humanas são erguidas sem que sejam levados em conta fenômenos previsíveis, como os temporais. Os processos de urbanização, quase sempre improvisados, tomam como referência situações mais comuns, cotidianas, é como se os rios jamais fossem ultrapassar suas calhas.

E tome de fazer casas e ruas em suas margens, como se os construtores tivessem feito uma espécie de pacto com São Pedro, que teria, assim, garantido que jamais mandaria água em excesso.

Em cidades grandes como Porto Alegre, São Paulo, Rio e Belo Horizonte, a irresponsabilidade é ainda mais evidente. Rios e córregos foram sendo aprisionados, como se neles fossem colocados espartilhos capazes de moldar e controlar seus corpos.

Basta uma chuva mais forte para que essas barreiras sejam ignoradas, ultrapassadas pela água que trata de recuperar seus caminhos naturais, desrespeitados num processo de urbanização que tentou conter o que não pode ser controlado. Nossas cidades foram sendo impermeabilizadas por asfalto, o que diminuiu a capacidade de absorção do solo. A falta de manutenção do sistema de águas pluviais contribui para sucessivas inundações.

A construção de grandes reservatórios, os piscinões, é um remendo para amenizar um problema criado pelas cidades. Erguido sobre aterros que diminuíram espelhos d'água e sepultaram pântanos, o Rio de Janeiro volta e meia é obrigado a conviver com a volta de fantasmas que permanecem submersos, mas vivos. 

Concentrado, nos primeiros dias, em cidades menores, do interior gaúcho, o cataclisma que se abate no sul do país aponta para um problema mais recente, a mudança climática associada à redução da cobertura vegetal nativa.

O que ocorre no Rio Grande do Sul reafirma que fatos científicos não podem ser tratados como uma questão de fé. Não se trata algo que nos dê o direito de acreditar ou de duvidar de sua existência. Da mesma forma que é impossível negar o fato de a Terra ser redonda, não se pode ignorar que a queima de combustíveis e derrubada de florestas têm impactos graves sobre o planeta. 

Não se trata de uma questão ideológica, de uma campanha contra um estilo de vida, de algo tramado por comunistas ensandecidos para minar e derrubar o capitalismo, é impossível tratar como coincidência o fato de que, nos últimos anos, sucessivos casos de descontrole da natureza estejam acontecendo. A temperatura sobe, geleiras derretem, o ciclo de chuva se modifica; nem rios da Amazônia escapam, constantes períodos de seca desafiam a perenidade daquele mundão aparentemente infinito de água.

A chuvarada que desaba no Sul não escolhe vítimas, afeta a vida até mesmo daqueles que, graças à desigualdade crônica brasileira, costumam escapar quase ilesos a tragédias de origem natural — têm casas mais seguras, moram em bairros urbanizados. Mas vale lembrar, nem os privilegiados conseguem escapar à falta de água potável e de energia elétrica. Não haverá barcos que evite o naufrágio coletivo.