Por: Fernando Molica

O bolsonarismo é imoderável

O ex-presidente Jair Bolsonaro. | Foto: Valter Campanato/Agência Brasil

Ao propor um bolsonarismo moderado, o filósofo e economista Joel Pinheiro da Fonseca sugeriu, na Folha de S.Paulo, algo impossível. O radicalismo é inerente à proposta política de Jair Bolsonaro: ele sabe que não teria qualquer chance num cenário de moderação, tanto que não perdoa qualquer costeada de alambrado em torno de temas que estruturam sua visão de mundo. No governo, qualquer mínima discordância era tratada como traição.

O ex-presidente provocaria a própria expulsão do campo político caso ensaiasse alguma moderação, o que equivaleria a uma fraquejada. É tão consciente da necessidade de botar fogo no parquinho institucional que tornou seu discurso ainda mais duro ao disputar o segundo turno em 2018 e 2022.

Para Fonseca, o bolsonarismo "surgiu como uma resposta à revolta contra o sistema que tomou o Brasil desde 2013", que se caracterizaria pela falta de transparência e de compromisso,  por conchavos, distância para com o eleitor, descaso com o dinheiro público e corrupção. Quem dera que tais elementos tão presentes desde sempre na história brasileira — mantidos e renovados no mandato de Bolsonaro — tivessem surgido apenas há onze anos.

Ele acerta ao identificar, na vitória bolsonarista, a influência de um desejo de ordem: as grandes manifestações abriram caminho para a negação do sistema político como um todo, o que favoreceu o crescimento de um deputado que dizia ser contra tudo, que batia de frente até com a estrutura militar e que prometia organizar a bagunça. Fonseca, porém, omite que tal desejo de ordem incluía a repressão a conquistas sociais, culturais e comportamentais.

Até então um candidato limitado à chamada família militar, Bolsonaro montou no cavalo selado por uma indignação difusa. Embalado pelas ruas, quase quadruplicou sua votação para deputado federal: de 120.646 votos (foi o 11o colocado no Rio em 2010) para 464.572, primeirão em 2014. Neste ano, a revolta ainda sem direção fez com que o na época psolista Marcelo Freixo fosse o deputado estadual mais votado no Rio, recebeu o apoio de 350.408 cidadãos.

Fonseca erra ao ver no bolsonarismo uma chance para a construção de uma direita liberal. Uma visão oportunista, que parte da sua constatação de que a direita antibolsonarista é incapaz de "conquistar as multidões". Uma avaliação que renova o equívoco da elitista UDN ao se jogar nos braços de Jânio Quadros e, depois, apoiar o golpe de 1964.

Bolsonaro sempre se mostrou mais próximo de um modelo econômico que remete à presença estatal, tanto que propôs o fuzilamento de Fernando Henrique Cardoso por este ter privatizado a Vale. Os gastos que promoveu em 2022 para tentar garantir a reeleição são incompatíveis com qualquer visão privatista. Posou de liberal apenas pela necessidade de encher o tanque de sua então inexistente plataforma econômica — o único posto disponível era o de Paulo Guedes.

O bolsonarismo não é moderável até por não partir de uma visão social e econômica capaz de ser adaptada à realidade. Como outros movimentos históricos da extrema direita, guia-se pela defesa de valores etéreos, como Deus, família, pátria e por uma visão canhestra de liberdade, a de discriminar. Precisa da guerra, alimenta-se do ódio àqueles que considera inimigos.

Ao falar da possibilidade de uma futura moderação bolsonarista, Fonseca cita os casos do Exército Republicano Irlandês e das Farc, que depuseram suas armas. Os exemplos são absurdos: o que houve entre nós foi uma tentativa golpista, não uma guerra que justificasse um acordo de paz — fora que uma pacificação teria sobre o bolsonarismo o efeito de kryptonita nos habitantes do planeta Krypton.

O crescimento de 138% nas mortos pela PM paulista mostra que o bolsonarismo exige uma constante renovação de compromissos de seus aliados. Moderado, extirpado da violência, o bolsonarismo deixaria de ser o que é para se constituir num partido como outros do Centrão que apostam na privatização das benesses estatais.  

A direita liberal não pode se escorar num projeto autoritário e intolerante por natureza, a menos que queria apenas fingir ser o que não é. Vale também lembrar o fim trágico dos sapos que insistem pegar carona com os escorpiões.