Por: Fernando Molica

Igreja da Salvação Bolsonarista

Ex-presidente Bolsonaro e Michelle acenando para a multidão de apoiadores que estiveram na orla carioca | Foto: Silvia Machado/Thenews2/Folhapress

O tom da maioria dos discursos do evento realizado em Copacabana revela que o bolsonarismo assumiu de vez a característica de culto religioso.

Não por acaso, assim como o ocorrera na Avenida Paulista, o encarregado de fazer as principais críticas não foi Jair Bolsonaro ou um político com mandato, mas um pastor, Silas Malafaia. 

Assim também como em São Paulo, o discurso de Michelle Bolsonaro foi estruturado a partir de uma visão religiosa, algo que assim daria ao bolsonarismo uma legitimidade independente das atribulações terrenas.

Em seu discurso, Bolsonaro criticou o atual governo, citou ministros que integraram seu gabinete, e pronunciou oito vezes a palavra Deus.  A ênfase no além procura levar o jogo para um campo em que bolsonaristas jogam mais à vontade, para um estádio onde as partidas são disputadas com regras menos rígidas; as quatro linhas que delimitam o terreno do confronto podem ter curvas — Deus, afinal, escreve por linhas tortas.

A fé vira assim uma espécie de botão de pânico acionável na hora do sufoco, remove montanhas legais e constitucionais. Não foi à toa que o ex-presidente passou a ser chamado de mito, algo além do humano, que está num outro plano. Ao mito é permitido agir de maneira que seria errada aos olhos dos mortais, gestos que, porém, guardam uma Verdade que seria revelada no momento adequado.

A lógica religiosa permite também a adaptação de palavras e de seus significados, até a liberdade ganha novos sentidos. Povos foram massacrados e espoliados para que os sobreviventes pudessem ter a liberdade de adorar um único e verdadeiro deus, aquele imposto pelos invasores. Como não haveria liberdade fora do cristianismo e do islamismo, o jeito seria trucidar os infiéis — seria para o bem deles.

O culto a Bolsonaro remove obstáculos temporais, acusações de roubo de joias, desprezo pela vida durante a pandemia, falsificação de certificados de vacinas, tentativa de golpe de Estado. É como se tudo isso não passasse de uma coleção de mentiras criadas para desafiar alguém iluminado.

Os escolhidos para atuarem como instrumentos divinos têm uma espécie de passe livre para cometer gestos que seriam imperdoáveis em relação a outros humanos. É por isso que Bolsonaro pode defender uma ditadura que aconteceu e condenar a que existe apenas em sua cabeça; que se dá ao direito de exaltar os censores que impediam a liberdade no passado e de condenar quem quer regulamentar a profusão de mentiras.

O campo da fé permite que se creia numa espécie de propósito oculto nas palavras do ex-presidente, como as razões que levaram Moisés a conduzir seu povo por décadas no deserto, como a ordem divina que obrigou Noé a construir sua arca. Deus e seus desígnios não podem ser contestados, afinal.

Bolsonaro sabe que o futuro próximo tende a lhe trazer surpresas desagradáveis, investigações apontam para sua responsabilização em casos graves, que a perspectiva de vir a ser preso são grandes. Tem consciência de que precisa atuar num campo em que possa programar o VAR, em que possa contestar os evidentes impedimentos, gols com a mão e agressões institucionais que cometeu. O jeito é chutar a bola pro Céu.