Por: Fernando Molica

O medo dos livros

Bolsonaro e prefeita exibem ficha de filiação ao PL | Foto: Divulgação

A prefeita de Canoinhas (SC),  Juliana Maciel Hoppe (PL), conseguiu o que queria ao jogar livros no lixo. Tornou-se conhecida nacionalmente, animou os bolsonaristas e gerou indignação entre os que defendem o direito ao conhecimento e à leitura.

Apelar para a estupidez humana sempre rende frutos, ainda que terríveis. A prefeita classificou os livros descartados de "porcaria", disse que eles pregavam "valores" diferentes daqueles "que a gente acredita". Os nazistas, ao queimarem livros, falavam em "limpeza" e "purificação", as fogueiras faziam parte de uma cruzada contra a arte que classificavam de "degenerada". Eles também jogaram no fogo livros que não correspondiam aos seus valores.

Há livros bons e ruins, os adequados e os não recomendáveis para crianças; pais, educadores e bibliotecários têm papel importante nesse processo de seleção. Mas chega a ser engraçado o ódio aos livros em tempos em que crianças têm, pela internet, acesso todo o tipo de conteúdo, o que inclui material relativo à pedofilia e ao abuso sexual. A mesma extrema direita que joga livros no lixo costuma fazer coro contra qualquer tipo de regulamentação das redes sociais. E olha que nelas não há moderação, tudo está ao alcance de mãos infantis.

No vídeo em Hoppe joga dois livros no lixo dá pra ver que um deles é "Aparelho sexual e cia" (Cia das Letras), tornado célebre no Brasil depois de exibido, pelo então candidato à Presidência Jair Bolsonaro, em 2018, no Jornal Nacional. Na ocasião, ele mentiu ao dizer que a publicação fazia parte de um suposto "kit gay" distribuído em escolas pelo Ministério da Educação.

Escrito pela francesa Hélène Bruller e ilustrado pelo suíço Zep, o livro foi publicado em 25 países, comprado por 1,5 milhão de leitores e trata da sexualidade em linguagem dirigida para crianças e jovens de 11 a 15 anos. Aborda temas como mudanças no corpo ocorridas na puberdade, paixão, doenças e pedofilia. É apresentado como um guia que, entre outros pontos, alerta para eventuais abusos — este tipo de ataque contra crianças e jovens é quase sempre praticado por parentes ou pessoas próximas; é bom que possíveis vítimas fiquem atentas.  

Sexo é outro tema que faz parte de uma espécie de obsessão do grupo político do qual a prefeita faz parte. É compreensível que haja dificuldades em relação ao assunto, que nem todos os pais consigam falar abertamente com seus filhos de algo que remete ao prazer, à intimidade, ao contato entre corpos. Bons livros, lidos com o devido acompanhamento, são um bom caminho para a abordagem da questão.

A associação do prazer ao pecado, uma das bases do cristianismo e de outras religiões, complica ainda mais a situação. Mas não tem jeito, sexo é natural, aquela criancinha linda ali só existe por ter sido gerada numa relação sexual entre papai e mamãe. 

E é bem provável que, em poucos anos, ela também queira praticar o mesmo jogo. É importante, portanto, que seja alertada para os riscos inerentes ao prazer. Negar a sexualidade não impede que ela exista.

Pais têm o direito de tentar administrar o acesso dos filhos a material que julgam não ser adequado. A biblioteca e a prefeitura de Canoinhas teriam cumprido seu papel se tivessem adotado cuidados para restringir o acesso a alguns livros, mas a solução do descarte é absurda, motivada por oportunismo eleitoral.

Desejos, como sabe a prefeita, não podem ser queimados ou jogados no lixo. A implicância com o sexo remete a outra coincidência com as fogueiras nazistas — entre as obras destruídas estavam as de Sigmund Freud, que inovou ao ressaltar o papel do sexo, ao mostrar que a repressão ao desejo gera neuroses e tantas complicações, pessoais e sociais. O problema não está nos livros, prefeita, mas em quem os tenta proibir.