Por: Fernando Molica

Ziraldo, um menino revoltadinho

Lenda da arte brasileira, Ziraldo faleceu no sábado, dia 6 de abril, aos 91 anos, em sua casa na Zona Sul do Rio de Janeiro | Foto: Divulgação

Os incontáveis e merecidos perfis de Ziraldo publicados nos últimos dias quase não frisaram um ponto fundamental: o adorável e cativante escritor de livros infantis não pode ser separado do militante político e do cartunista que tanto combateu a ditadura.

O humanismo que transborda de seus livros feitos para crianças está relacionado à ideia de um mundo mais solidário, feliz e socialmente justo. Ele sabia que a busca de alguma harmonia e lirismo exige a participação em algumas brigas.

Lançado em 1969, "Flicts" é um livro emocionante, delicado e sensível — e um lindo manifesto de valorização das diferenças. Trata da história de uma cor que não se identificava com nada que existia em volta; era diferente, não estava nas flores ou nas bandeiras, não tinha um lugar no mundo. Uma cor que só se descobriria lá longe, ao encontrar seu lugar na lua.

Diferentemente do Patinho Feio, que se torna bonito ao crescer e virar um cisne, Flicts não precisou de uma metamorfose para espantar sua inadequação. Ao perceber que a lua era Flicts, a cor reconheceu sua própria beleza e importância — sendo quem era, quem sempre foi e que assim continuaria a ser. É impressionante que um livro com tamanha carga tenha sido lançado há mais de meio século, há 55 anos.

Publicado em 1980, ainda no regime militar, o também lírico "O menino maluquinho" é quase um doce panfleto pela liberdade, pelo direito à brincadeira e ao prazer. O livro toca em temas sensíveis, como a separação dos pais do protagonista, e assim mostra a capacidade do garoto de não fugir da raia, de encarar problemas, de recriar suas relações.

"O Pasquim", semanário de humor e política criado por Jaguar,  Tarso de Castro e Sérgio Cabral nasceu em 1969, no auge da ditadura. Ziraldo se integraria logo ao grupo que tanto debocharia dos militares e que se colocaria na defesa da redemocratização. Menino maluquinho e revoltado, ele seria preso três vezes por sua atuação política. 

Em suas criações, Ziraldo deixou claro o lado em que estava, sempre fez oposição aos golpistas. Em 1981, diante da farsa da apuração, pelo Exército, do atentado terrorista ao Riocentro, ele lavou boa parte da alma nacional ao estampar, no Jornal do Brasil, um cartum que trazia apenas uma exclamação: "Oh!" — algo que traduzia o espanto e a indignação pela apresentação, na véspera, do resultado do Inquérito Policial-Militar comandado pelo coronel, e futuro general, Job Lorena de Sant'Anna.

Ex-integrante do Partido Comunista Brasileiro, Ziraldo se filiou ao Psol em 2005, é o autor da marca do partido. Polemista por natureza, foi radical até na hora de cometer algumas declarações infelizes, que demonstraram preconceito incompatível com sua visão de mundo.

Suas derrapadas, porém, provaram, mais uma vez, que obras costumam se impor aos seus próprios autores: Flicts, Maluquinho e o Menino Marrom confirmam.

 

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