Por: Fernando Molica

Os tiros que muitos fingem não ouvir

Cena de "Zona de interesse" - a casa da família Höss e o campo de concentração. | Foto: Divulgação

O filme "Zona de interesse" permite novas reflexões sobre o nazismo e permite também que pensemos na banalização do mal que nos cerca, nos sons de tiros e gritos ao nosso redor. Frisa que o Holocausto só foi possível graças à cumplicidade de milhões de pessoas, que aceitaram o projeto de matança, que dele se beneficiaram.

Ganhador do Oscar de melhor filme internacional, o longa de  Jonathan Glazer trata da família de um oficial nazista que vive ao lado do campo de morte de Auschwitz. Aborda a naturalização do horror promovido por um sistema político que decidiu eliminar judeus e todos os outros tidos como indesejáveis: homossexuais, ciganos, socialistas, entre outros.

O filme não mostra os judeus que, ali ao lado, estão sendo massacrados, mas os sinais da barbárie, os sons (os tais tiros e gritos) e a fumaça que sai das chaminés dos crematórios usados para queimar, em escala industrial, os corpos de seres humanos. 

A família do oficial, Rudolf Höss — que comandava Auschwitz —, sabe do que se passa ao lado; mulheres da casa selecionam com alegria os objetos roubados de pessoas levadas para a morte: peças de roupas, um belo casaco, e até um diamante encontrado escondido num tubo de pasta de dente. A que encontra a pedra diz, ironicamente, que passaria a pedir para receber mais daqueles tubos. O aval dos canalhas foi decisivo para o extermínio em massa.

O filme expõe o ressentimento e a amargura dos opressores, sentimentos que afloraram no Brasil nos últimos anos. A sogra do oficial comenta, com desdém e um certo prazer, ser provável que sua ex-patroa, uma judia rica e envolvida com livros, estivesse, naquele momento, estar bem ali, do outro lado do muro. 

Por suas dimensões e implicações, o  Holocausto é incomparável com qualquer outro fato histórico, até mesmo com outros casos de genocídio de milhares ou de milhões de pessoas. Mas é inevitável ver o filme e não lembrar do que ocorre em periferias e favelas brasileiras, em particular, na Zona Sul do Rio, onde riqueza e miséria ficam muitas vezes lado a lado, como a casa dos Höss e o campo de Auschwitz.

Em muitos de nossos apartamentos ou casas também é possível ouvir tiros, gritos, sirenes, explosões. Mas a tragédia que ocorre com esses vizinhos não costuma provocar empatia ou dor. No caso dos Höss, as vítimas eram judeus; no nosso, pobres, quase todos pretos. 

É a indiferença cúmplice que permite aos governos insistirem em operações policiais focadas não na racionalidade de uma política de segurança pública, mas na matança de eventuais suspeitos — eles sabem que boa parte da sociedade também não está nem aí para as mortes dos que moram do outro lado do muro, quer mesmo que eles sejam dizimados. 

Ao tratar do Holocausto, "Zona de interesse" alerta para o que ocorre em tantas outras inúmeras partes do planeta, inclusive aqui no Brasil e na Faixa de Gaza: vale lembrar que áreas de conflitos frequentes no Rio são, há décadas, chamadas pelo nome da estreita porção de território palestino.

 

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