Por: Fernando Molica

Vozes e mordaças da ditadura

Dilma Rousseff durante audiência em tribunal militar. | Foto: Reprodução

Uma decisão da ministra Cármen Lúcia, do Supremo Tribunal Federal, e a estreia de um podcast trazem para o presente e lançam para o futuro registros de um passado que não pode ser esquecido: as gravações de vozes dos que comandaram ou legitimaram a ditadura militar que, depois de amanhã, comemora 60 anos. 

A ministra determinou o fim da resistência do Superior Tribunal Militar em fornecer ao pesquisador Fernando Augusto Fernandes todas as gravações de sessões públicas e secretas de casos ocorridos na década de 1970 — a Justiça Militar era encarregada de julgar os acusados de atuar contra a ditadura.

Já a rádio CBN começou a divulgar áudios obtidos pelo jornalista Elio Gaspari que trazem 300 horas de gravações de conversas mantidas, por, entre outros, o general Ernesto Geisel, que presidiu o país entre 1974 e 1979. O material foi uma das fontes utilizadas por Gaspari para escrever seus cinco livros fundamentais para se conhecer a ditadura por dentro.

Idealizado pelos jornalistas Pedro Dias Leite e Plínio Fraga, o projeto reúne áudios que não deixam dúvidas sobre um período cujo caráter é até hoje dissimulado por líderes políticos e comandantes militares. Geisel deixa claro: 1. havia era uma ditadura; 2. o regime assassinava adversários.

Em um comentário, o general defendeu o fim do que classifica de ditadura. Em fevereiro de 1974, pouco antes de assumir a Presidência, disse para o general Dale Coutinho, seu futuro ministro do Exército. "Ô Coutinho, esse troço de matar é uma barbaridade, mas acho que tem que ser". 

Antes, o oficial dissera para Geisel: "O negócio melhorou muito. Agora, melhorou, aqui entre nós, foi quando nós começamos a matar".  Eles não falaram em troca de tiros, em combates, mas em homicídios, como fica ainda mais evidente em outra frase daquele que assumiria a cadeira presidencial: "Porque antigamente você prendia o sujeito e ia lá para fora" — ou seja, saía do país.

A resistência do STM de entregar todos os áudios — chegou a alegar problemas técnicos nas gravações — remete à foto que registra, em 1970, a presença de Dilma Rousseff numa auditoria militar. Presa, vítima de tortura, ela mantém um olhar altivo que contrasta com a atitude de dois oficiais fardados, integrantes da corte, que escondem seus rostos.

Aqueles homens envergonhados sabiam que participavam de uma farsa, que estavam sendo coniventes com uma ditadura, com um regime que torturava e matava; covardes, não queriam que a história registrasse suas fisionomias.

Ao tentar impedir a divulgação dos áudios, o STM fez como aqueles oficiais, tentou amordaçar a história, e o fez ao longo de décadas. Sabe que a maioria daquelas gravações registram momentos vergonhosos para os militares.

O podcast e a decisão da ministra reforçam o que sequer deveria precisar ser repetido: não haverá um completo acerto de contas com a história enquanto comandantes das Forças Armadas continuarem a negar o óbvio, não aceitarem que o golpe que depôs o presidente constitucional não deve, em qualquer hipótese, ser visto como motivo de orgulho.

As FFAA não podem continuar a enaltecer feitos que redundaram em mortes de compatriotas, como as campanhas de Canudos e o golpe de 1964. É preciso que, como qualquer pessoa ou instituição, as três forças aprendam com a história, revejam seus conceitos, adequem seus currículos ao mundo que superou a guerra fria.

As consequências nefastas do envolvimento de oficiais de altas patentes com as articulações golpistas de Jair Bolsonaro mostram, mais uma vez, o erro de permitir que a política entrasse nos quartéis. A história precisa ser outra, mas, para isso, é necessário que o passado seja ouvido em alto e bom som, sem medo ou restrições.

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