Por: Fernando Molica

Divergências delicadas e necessárias

O então presidente Jair Bolsonaro em uma das muitas reuniões ministeriais, durante o seu governo. | Foto: Arquivo/Marcos Corrêa/PR

O bolsonarismo disparou tantos petardos em direção a grupos discriminados e a produtores de arte e cultura que causou um efeito semelhante ao ocorrido durante a ditadura quando, em nome da luta contra um adversário maior, algumas divergências na oposição eram postergadas para não servirem de munição ao inimigo em comum.

Os ataques de Jair Bolsonaro e de aliados às manifestações artísticas que tratavam de diversidade e a recriação da censura geraram uma espécie de toque de reunir que aumentou a tendência de dificultar o tratamento de alguns temas na ficção.

Foi fundamental que piadas focadas na humilhação de seres humanos tenham sido banidas, não é tolerável que o riso seja provocado pela reiteração criminosa do preconceito. O problema é a criação de uma linha divisória que, na literatura e em outras artes, restringe personagens que verbalizem preconceitos ou que, pertencentes a setores historicamente perseguidos, ajam de maneira condenável — como se características negativas atribuídas a um ser ficcional ofendessem um coletivo de pessoas reais.

É algo que remete a processos movidos por entidades profissionais contra a representação de colegas em novelas ou filmes, como se a arte não pudesse tratar de políticos ladrões, policiais corruptos, jornalistas mentirosos, médicos assassinos, advogados e engenheiros incompetentes.

Em artigo publicado na Folha de S.Paulo, o escritor Santiago Nazarian ressaltou que, depois de disseminada na produção de livros infantis e infantojuvenis, a contratação, por editoras, dos chamados "leitores sensíveis" começa a existir na análise de obras destinadas ao público adulto.

Esses leitores, escreveu, são responsáveis, antes da publicação do livro, "por analisar se certa palavra pode soar ofensiva a homossexuais, se uma ideia pode ecoar mal no movimento negro, se as mulheres vão se incomodar com certa cena, se o livro contém 'gatilhos' (...)". Essa prática não começou no Brasil, mas a radicalização política a potencializou.

É justo que pés e calos esmagados ao longo de gerações sejam sensíveis a agressões nem sempre percebidas por quem nunca as sofreu, mas a eliminação de personagens racistas, machistas e homofóbicos não impede a existência de preconceituosos: pior, reforça a ideia enganosa de que eles desapareceram.

A eleição de Bolsonaro revelou a existência de cidadãos que elogiavam preconceitos do então candidato, sentiam-se representados por suas falas. Muita gente que rejeitava o ex-capitão teve uma surpresa ao descobrir um Brasil que mostrava uma cara tão diferente.

Literatura não pode ser porta-voz do bom-mocismo, a ela não cabe idealizar o mundo ou apontar caminhos. A boa ficção cria ou indica problemas, levanta e antecipa dúvidas e conflitos, dá voz a quem desconhecemos, abre possibilidades de conversa ou mesmo frisa a importância de um combate. Retirar seres desprezíveis das páginas é até fácil, mas não impede que esbarremos com eles na próxima esquina.

 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.