Ainda que tenha sido elaborada para dar uma resposta ao Supremo Tribunal Federal, a proposta de emenda constitucional que dificulta a diferenciação entre traficantes e usuários toca num ponto sensível e enganoso, a ideia de que é possível usar a lei e as ameaças de punição para controlar desejos.
Talvez por influência religiosa, há uma crença de que a proibição de determinadas drogas dificulta seu consumo. Temos a tendência de terceirizar a fonte de nossos problemas — a culpa é sempre do outro, pessoa física, instituição, satanás. É como se o que classificamos de desvios fosse resultado da atuação de uma serpente demoníaca que, sempre à espreita, impede que vivamos no paraíso, sem dúvidas, pecados ou boletos.
Como na velha marchinha de Carnaval, trata-se de jogar a responsabilidade para frente: "Foi ele!/ Foi ele sim! Foi ele que jogou o pó em mim!" O pó em questão é o de mico, e a letra é um apelo para que o guarda retire o culpado por espalhar a substância no salão: "Bota pra fora esse moço".
Questões ligadas à desigualdade, à dificuldade de acesso à educação formal, à modernidade e mudanças de comportamento e ao impacto do processo abrupto de urbanização agravam uma situação de insegurança de milhões de pessoas, que se acham perdidas, que não conseguem fazer manter valores que marcaram suas vidas.
A religião restaura uma espécie de fio condutor, define o que pode e o que não pode. Com frequência, a fé e seus mandamentos servem de inspiração para leis terrenas, como se a ideia do Jardim do Éden pudesse, assim, concretizar-se neste nosso vale de lágrimas, bastaria seguir o que está escrito.
Da mesma forma que Moisés usou o decálogo para botar ordem na casa que se movia pelo deserto — não se pode roubar, matar, mentir, cobiçar a mulher do outro —, leis inspiradas em princípios religiosos seriam capazes de dar jeito nessa nossa bagunçada e interminável travessia.
Tantos séculos depois, a tal ordem ainda não se estabeleceu e não vai ser desse jeito, com ameaças e promessas, que haverá alguma solução. Até porque, rebeldes e diferentes por natureza — nascemos assim —, nem sempre nos adequamos ao que, dizem, seria o correto. Sabe aquela parada do ilegal, imoral e engorda? Pois.
Incentivar ilusões de que tudo vai se acertar com leis mais rígidas não passa de uma manifestação mentirosa e oportunista. Claro que uma sociedade precisa de regras que punam excessos que afetam a vida alheia; no limite, é preciso parar no sinal vermelho.
No caso específico das drogas colocadas na ilegalidade, a experiência internacional mostra que não adianta seguir na lógica da criminalização. Quem quer usá-las, usa. Há muitos casos trágicos, de dependência, de vidas destruídas pelo vício, como no caso do álcool. Mas há uma grande maioria que usa maconha da mesma forma que outros bebem regularmente — não são pessoas doentes, não precisam de tratamento.
Descriminalizar não é legalizar, mas impedir que usuários sejam tratados como bandidos. Um dos diferenciais mais razoáveis é a quantidade de droga encontrada com um cidadão. A atual lei, por não definir parâmetros objetivos para separar traficante de usuário, deixa a escolha para a polícia: na prática, brancos de classe média são apenas advertidos; negros e pobres acabam presos e têm suas vidas marcadas pelo enquadramento no Código Penal e por uma eventual condenação.
A PEC piora a situação, impede que o critério de quantidade de droga seja levado em conta. Os senadores que a aprovaram sabem que seus filhos e os filhos de seus parentes e amigos não correm o risco de parar na cadeia se forem flagrados com um baseado, o castigo será para os pobres diabos de sempre. É esta certeza que lhes permite cantar pelos salões algo como Vem cá seu guarda, bota em cana esse moço.