Por: Fernando Molica

Golpe de 64 precisa ser encarado

Recife (PE), 19.01.2024 - Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, participa da cerimônia de transmissão de cargo do Comando Militar do Nordeste, em Recife. Foto: Ricardo Stuckert/PR | Foto: Ricardo Stuckert/PR

Ao determinar o cancelamento de eventos críticos ao Golpe de 1964 para não criar arestas com militares, o presidente Lula carimbou nas testas dos atuais comandantes o rótulo de cúmplices tardios dos que implantaram e mantiveram a ditadura.

Eles, que nada têm a ver com o que houve entre 1964 e 1985, deveriam rejeitar esse tipo de agrado, não podem ter compromissos com o que desabona suas instituições. A lógica das intervenções militares, ainda tão presente entre nós, precisa ser sepultada.

Passados 60 anos da deposição do presidente constitucional por comandantes aliados a lideranças civis, é absurdo que o episódio continue a não poder ser encarado de frente, inclusive — e principalmente — pelas Forças Armadas. Isso revela que militares continuam a manter posições políticas, inclusive na análise de fatos históricos.

Qualquer sinal de constrangimento diante da menção do que houve — um golpe militar seguido de ditadura — reforça que os fatos não foram devidamente analisados, processados e superados. Décadas depois, permanece uma acomodação, uma espécie de deixa pra lá, medida incompatível com a democracia e que revela temores civis em relação aos fardados.

Como todos os cidadãos, chefes militares têm, pessoalmente, o direito de achar o que bem entendem da política, da economia e da história. Mas não poderiam permitir que suas visões de mundo contaminassem  instituições que, por determinação constitucional, têm que ser subordinadas ao poder civil.

Não podem agir como crianças imaturas que se negam a encarar a vida real, não têm o direito de usar eufemismos para tratar de uma ditadura que, como qualquer outra, de direita ou de esquerda, perseguiu, torturou e matou. 

Pelo bem até das próprias instituições militares, já passou da hora de os comandos das três forças admitirem o inegável fato histórico de implantação de uma ditadura em 1964. É preciso tirar das FFAA o peso histórico de aprovar o que fizeram torturadores e assassinos, já passou da hora de acabar com assombrações da guerra fria, de limar o preconceito ideológico das escolas de formação dos fardados.

O fato de muitos dos atuais oficiais serem filhos ou netos de militares que atuaram na ditadura não pode ser motivo de constrangimento ou ranger de dentes. A falta de uma prestação de contas em relação à história — agora reafirmada pelo presidente da República — representa uma ameaça ao nosso futuro. É só lembrarmos das articulações golpistas em que se meteram comandantes militares no governo passado e da não punição dos responsáveis pelas bombas no Riocentro, ato cometido por integrantes do Exército depois da anistia. O capitão da bomba foi promovido a coronel.

Ao evitar melindrar as FFAA, Lula gera um constrangimento para o próprio país, particularmente para parentes e amigos de vítimas da ditadura. Também mantém sobre as instituições culpas e responsabilidades que só poderão se expiadas com o devido reconhecimento do que ocorreu.

O processo de admissão dos erros e crimes pretéritos permitiria também uma melhor análise da atuação de grupos de esquerda, em particular dos que tentaram implantar uma luta armada para derrubar a ditadura e implantar o socialismo.

Não há como acreditar em compromisso de militares com a preservação da democracia se seus comandantes, até hoje, dão a entender que aprovam o que houve no pós-1964, não admitem rever seus próprios conceitos e suas visões históricas. Não se trata de revanchismo, mas de estabelecimento de parâmetos mínimos de convivência institucional, que precisam ser cobrados pelo presidente da República.

 

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