Por: Fernando Molica

Os medos dos que censuram

Capas dos livros 'Outono de Carne Estanha', de Airton Souza, Editora Record; e 'O Avesso da Pele', de Jefferson Tenório, Editora Companhia da Letras. | Foto: Divulgação

Ao censurarem ou dificultarem a circulação de livros e de outras manifestações artísticas, os repressores procuram revelar certezas, mas acabam tornando públicos seus próprios medos, inseguranças e fragilidades. A chave para tal comportamento é a frase que, há alguns anos, uma artista plástica estrangeira projetou em rochedos cariocas: "Proteja-me do que desejo".

Os que exercem a censura tentam aprisionar formas de se encarar e de se revelar o mundo. É como se, impossibilitados de matar uma ideia, a isolassem num presídio de segurança máxima. Como se o confinamento fosse capaz também de impedir que aquele jeito de ver o mundo afetasse suas próprias vidas, pensamentos e fantasias.

Ao justificarem as medidas repressivas tomadas em relação ao romance "Outono de carne estranha" (Record), de Airton Souza, a direção do Sesc enviou ao seus núcleos regionais uma circular em que recomenda cuidados na utilização do livro, um dos vencedores do prêmio que leva o nome da instituição.

Isso porque o romance, diz o texto, trata de "conteúdo sensível" e seria capaz de "ativar gatilhos emocionais e psíquicos". O livro que gerou tantas preocupações e despertou a adoção de tamanhos mecanismos de proteção trata, veja só, da relação amorosa entre dois homens: no documento do Sesc faltou a adaptar a frase que acompanha a publicidade de bebidas alcoólicas, que afetam a consciência: "Leia com moderação".

A internet escancarou de vez a exposição de imagens relacionadas ao sexo e à pornografia, tudo ao alcance de qualquer criança. Como presidente, Jair Bolsonaro não demonstrava qualquer cuidado em utilizar, publicamente, palavras tidas como de baixo calão — numa reunião ministerial, pronunciou cinco delas em 37 segundos. 

Mas o tal conteúdo adulto das imagens e o vocabulário dee Bolsonaro não incomodam os censores, graves são os palavrões impressos em livros que questionam uma sociedade tão desigual e preconceituosa.

"O avesso da pele" (Companhia das Letras), de Jeferson Tenório, é um dos melhores romances da literatura brasileira contemporânea. Trata da relação entre pai e filho, uma história permeada de sonhos, projetos e frustrações.

Ao abordar as vidas de personagens negros, o livro fala, com muita sensibilidade, de racismo e de violência policial, isso sem se deixar levar pelo panfletário. Não são os poucos palavrões ou uma ou outra referência a práticas sexuais que incomodam os que tentam impedir a circulação do romance em escolas. O que não suportam é se identificarem com os responsáveis pela tragédia narrada.

Ao interditarem livros como "Outono de carne estranha" e "O avesso da pele", censores avaliam que assim calarão os próprios desejos e pecados, que conseguirão reprimi-los, investem numa batalha perdida. O problema não está nas páginas, mas nos olhos, nos desejos e na consciência de quem as lê. Ao invés de restringirem o acesso à literatura, os repressores/reprimidos deveriam tratar de suas próprias questões.

 

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