Por: Fernando Molica

Deus não foi convidado para o debate português

Candidatos a primeiro-ministro de Portugal | Foto: Reprodução/YouTube

Deus não foi chamado para participar do debate que, há cerca de duas semanas, reuniu os principais candidatos a primeiro-ministro de Portugal, Pedro Nuno Santos, líder do PS (de esquerda), e Luís Montenegro, da AD (centro direita).

Acompanhei boa parte do confronto na casa de amigos, em Lisboa. A discussão foi dura, tensa, os dois políticos expuseram propostas e contestaram de forma o adversário. O favorito Montenegro cobrou o que classificou de contradições entre Santos e o atual governo, do PS; Santos jogou pesado em relação às propostas conservadoras.

Mas, pelo que ouvi, nenhum deles acusou o outro de não acreditar em Deus, e olha que os ateus representam apenas cerca de 4% da população, formada por 80% de católicos. Arrisco dizer que eu seria ironizado caso perguntasse a um local o porquê da ausência de questões religiosas no debate: "Pois que a eleição é para o Parlamento, não para o colégio de cardeais, ó pá". 

Temas relativos à família foram tratados: valores das aposentadorias, geração de emprego e renda, educação, saúde. Eles abordaram, portanto, assuntos que efetivamente interessam às famílias portuguesas, todos ligados à qualidade de vida de cada um dos habitantes do país — aposentados, trabalhadores, estudantes e todos que necessitam de atendimento médico.

Os candidatos demonstraram saber que não cabe ao Estado se meter na fé da população, muito menos na vida interna das famílias ou na sexualidade de seus integrantes. Não têm dúvidas de que esses temas pertencem à vida íntima de cada cidadão.

Cabe ao Estado criar condições para o progresso do país — educadas, empregadas, capazes de gerar renda e tendo à disposição uma boa rede de saúde, as famílias agradecem. E vale frisar: político que fala muito em família tende a se preocupar quase que exclusivamente com seus parentes.

Em Portugal, o ponto saber qual o projeto mais adequado para o país em 2024, se o de esquerda ou o centro direita. É melhor ter um Estado maior ou um que dê mais espaço para as iniciativas de cada cidadão? Vale pagar impostos elevados para ter saúde e educação públicas e de boa qualidade ou é melhor deixar mais grana no bolso de cada português para que ele pague planos de saúde e escolas privadas? Ser ou não ser estatizante ou liberal?

A discussão pode e deve incluir questões relacionadas à honestidade de políticos e à correta aplicação dos recursos públicos. Todos temas terrenos, que têm que ser tratados e avaliados por cada ser humano.

Seria até injusto com Deus achar que Ele não nos considera capazes de tomarmos conta de nossas próprias vidas, que precisamos de Sua opinião até para saber se o projeto mais adequado para a cidade, para o estado e para o país é este ou aquele. Se, de acordo com quem crê, o livre-arbítrio é uma concessão divina, é razoável que tratemos de exercê-lo.

A política trata de coisas do mundo palpável, não foi feita para discutir reforma agrária no Céu, para julgar se o anjo A tem razão na briga com o anjo B, se santos existem e podem servir de intermediários na relação com Deus ou se não passam de uma criação católica para ocupar o lugar de deuses gregos e romanos e, assim, popularizar o cristianismo.

Há infinitos caminhos para se falar com Deus e até para ignorá-lo; a fé é um instrumento de interação social, de conforto, de esperança, mas também é objeto de muita manipulação. Em nome da democracia é preciso limitar essa história de terceirizar para Deus a responsabilidade pela construção de uma sociedade melhor.

Tratemos de seguir o exemplo português e cuidar das nossas vidas; o tanto de brasileiro que vai pra lá indica que, no limite, Deus tem gostado de deixar tarefas humanas com os humanos.

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