Por: Fernando Molica

Apurar não é remoer

Eduardo Collier Filho, desaparecido durante a ditadura. | Foto: Reprodução

Diferentemente do presidente Lula, parentes e amigos de 210 desaparecidos durante a ditadura não têm como deixar de remoer o passado: estão entre os brasileiros continuam órfãos de quem sabe e do talvez (a expressão foi usada, em 1977, em programa de TV do MDB pelo deputado Alencar Furtado, que, por isso, perderia seu mandato).

Uso a primeira pessoa para citar uma conterrânea de Lula, Risoleta Meira Collier, que foi minha vizinha. Ela morreu por volta dos 90 anos de idade sem saber o que foi feito do corpo de Eduardo Collier, seu filho, sequestrado pela ditadura em fevereiro de 1974 ao lado de Fernando Santa Cruz, pai de Felipe Santa Cruz, que viria a ser presidente da Ordem dos Advogados do Brasil entre 2019 e 2022.

É impossível acreditar que o presidente da República teria coragem de dizer que não ficaria "remoendo" fatos relacionados à ditadura diante de dona Risoleta e de Elzita Santa Cruz Oliveira, mãe de Eduardo. Remoer, como ensina o Dicionário Houaiss, é sinônimo de causar importunação, molestar, enfadar. 

As duas, assim como outras centenas de mães, não tiveram sequer o direito de enterrar seus filhos, moídos nos porões da repressão. Segundo  Cláudio Guerra, delegado de polícia que colaborou com o regime, Eduardo, Fernando e outros militantes tiveram seus corpos queimados numa usina de cana em Campos dos Goytacazes (RJ).

Assim que souberam do sequestro dos filhos, Risoleta e Elzita impetraram habeas corpus do Superior Tribunal Militar e trataram de procurá-los: num quartel do Exército, em São Paulo, receberam a informação de que os dois estavam lá, presos, mas que não poderiam ser visitados naquele dia, apenas no domingo seguinte.

Elas voltaram no dia combinado, e foram então informadas de que tudo não passara de um engano, que os rapazes não haviam passado pelo quartel, onde funcionava o DOI, Destacamento de Operações Internas, responsável por boa parte das torturas e mortes então cometidas. Tudo foi relatado em carta que ambas enviaram para o então ministro-chefe da Casa Civil, general Golbery do Couto e Silva. Elas pediam ajuda para que seus filhos fossem localizados — não foram atendidas.

Lula sabe que é impossível "tocar esse país pra frente" sem que sejam esclarecidos pontos fundamentais da nossa história recente. Ele, que tanto cultua a própria mãe, não pode ignorar o que se passou com Risoleta, Elzita, com tantas Marias e Clarices. A declaração do presidente não foi algo isolado: até agora, ele não cumpriu o dever cívico e a promessa de campanha de recriar  Comissão Especial de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos, extinta por Jair Bolsonaro. 

A tolerância da cúpula militar com manifestações golpistas ocorridas no governo passado e a, ao que tudo indica, participação de oficiais-generais da ativa em planos de quebra da institucionalidade são consequências diretas da tradição brasileira de tolerar a indisciplina e a atuação política das Forças Armadas. Ao falar em remoer, Lula desrespeita mortos e ajuda a manter a tutela militar.

É inconcebível também que chefes militares se recusem até hoje a admitir que entre 1964 e 1985 houve uma ditadura no país. É preciso que eles reconheçam o óbvio, que reformulem preconceitos ideológicos ainda presentes na formação de futuros oficiais, que aprendam que são subordinados ao poder civil — suas armas pertencem ao povo brasileiro.

Já passou da hora também de os atuais comandantes romperem a fidelidade com antecessores que desrespeitaram as próprias instituições militares, não pode haver alinhamento nem cumplicidade tardia com torturadores.

 

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