Por: Fernando Molica

Anistia injustificável

Ex-presidente Jair Bolsonaro não tem legitimidade para falar em pacificação. | Foto: Reprodução

Com a carreira marcada por frases como "Vamos fuzilar a petralhada" e por uma série de gestos de estímulo à violência política, o ex-presidente Jair Bolsonaro não tem legitimidade para falar em pacificação.

Ao clamar por anistia até para crimes que ainda não foram apurados e julgados, ele busca escapar de punições e tenta minimizar atos e palavras relacionados à mais grave tentativa de ruptura democrática desde o fim da ditadura que ele tanto elogia. 

Não se pode anistiar aqueles que promoveram diversos atos golpistas — entre eles, a intentona de 8 de Janeiro — e que, depois de todo esse tempo, mantêm o mesmo tipo de discurso. Caso tivessem sido vitoriosos, o Brasil estaria mergulhado numa ditadura, porões teriam sido reativados: não apenas a petralhada teria sido fuzilada.

Anistias são necessárias em momentos históricos como os que marcam o fim de regimes autoritários que interditaram práticas políticas normais numa democracia. Foi o que ocorreu em 1979, quando uma ditadura já cambaleante aproveitou o processo de abertura para beneficiar adversários mas também para livrar de punições os que, em nome e por ordem do Estado, mataram e torturam.

Os atos que culminaram com o 8 de Janeiro não ocorreram numa ditadura; foram gestados durante a vigência de liberdades garantidas pela Constituição. Não se pode dizer que os golpistas adotaram a violência por falta de caminhos lícitos de atuação — houve o contrário, usaram a liberdade para tentar derrubar a democracia, rebelaram-se contra um processo eleitoral que, em 2018, levara seu líder ao poder.

Ao admitir alguma punição para os que promoveram depredações de prédios públicos, Bolsonaro utiliza o mesmo estratagema do projeto de anistia apresentado por seu ex-vice, o senador Hamilton Mourão (Republicanos-RS), que, na prática, colocaria em liberdade todos os condenados.

Ambos propõem uma despolitização da trama golpista e a punição apenas dos vândalos. O objetivo é evidente: colocar até esses destruidores na rua, já que as penas para crimes como dano qualificado, deterioração de patrimônio tombado e associação criminosa armada são bem menores do que as previstas para abolição violenta do Estado Democrático de Direito e Golpe de Estado.

O Código Penal é claro ao classificar como crime a própria tentativa de abolição da democracia, um cuidado que faz todo o sentido. Não haveria como punir golpistas no caso a trama inconstitucional fosse vitoriosa, os caras, afinal, estariam no comando do país.

A punição a todos os que conspiraram e/ou agiram contra a democracia é essencial para que impedir futuras aventuras contra a ordem institucional. A não punição de golpistas ao longo da história brasileira é que viabiliza a permanência da tutela militar e a constante ameaça ao que determina a Constituição.

Chega ser irônico que bolsonaristas, que tanto defendem penas duras para tanto criminosos, relativizem o ataque a algo tão precioso quanto a democracia. O discurso moderado de Bolsonaro no ato em São Paulo não surpreende. Ao longo de seu mandato, ele, por diversas vezes, assumiu um tom de conciliação quando se via ameaçado; passadas as nuvens, ele retomava sua prática habitual. 

As provas e indícios recolhidos até agora indicam que Bolsonaro teve papel central na articulação de uma virada de mesa, mas é preciso que a Polícia Federal, o Ministério Público e a Justiça não repitam os erros e abusos cometidos ao longo da Lava Jato.

A eventual condenação do ex-presidente não pode ocorrer com base em ilações ou convicções. Ele, como qualquer cidadão, tem o direito de se defender, de não ser alvo de perseguição política. Mas os culpados pela articulação e pelos atos golpistas precisam ser punidos de maneira exemplar, de acordo com a lei. As condenações são essenciais para que afastemos de vez as cíclicas ameaças à democracia.

 

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