Por: Fernando Molica

Escolas de samba nas salas de aula

Viradouro fez um enredo chamado de "Arroboboi Dangbé", sobre o culto vodum às serpentes | Foto: Marcelo Perillier

Os conhecimentos acumulados, reciclados e levados para a Avenida pelas escolas de samba deveriam ser incorporados aos currículos das escolas, principalmente daquelas que ficam nas vizinhanças das agremiações.

Foi por acompanhar os desfiles desde pequeno que soube da existência da cronista Eneida de Moraes e do poeta Jorge de Lima, da Pasárgada de Manuel Bandeira, de Macunaíma, da Guerra de Canudos, da criação do mundo na tradição nagô, da vedete Zaquia Jorge — agora enredo de livro de Marcelo Moutinho.

Foi ao amanhecer de terça, com a Viradouro, que aprendi algo sobre as guerreiras Mino, do reino Daomé. Na véspera, a Beija-Flor me alertou para a existência de Bendito Santos, o Rás Gonguila. Há alguns anos, a Mangueira me apresentou a Dom Obá 2o, príncipe dos esfarrapados.

Mas além de tratarem de assuntos pra lá de relevantes em seus enredos, as escolas, pelo simples fato de existirem, carregam uma quantidade inimaginável de saberes e experiências. Escola de samba tem a ver com formação comunitária, com afirmação cultural, com negociação com o mundo institucional. São escolas de formação artística, plástica, dramatúrgica, poética, musical e cidadã.

Escolas marcam e enchem de afeto o território de nossas cidades. Impossível separar a Estação Primeira de Mangueira da favela que lhe serviu de berço e que até hoje a embala, é por sua causa que aquele morro no caminho do Centro é uma marca conhecida internacionalmente, identificável assim que avistamos uma combinação de suas cores.

A Mocidade retira da Vila Vintém a caracterização de ser apenas mais uma favela carioca, assim como fazem Tijuca, São Clemente, Salgueiro, Tuiuti e tantas outras. Madureira ("Seu samba, sua história/Madureira, cantamos sua glória") tem lugar especial no coração de milhões e milhões de brasileiros por ser a terra de potências como Portela e Império Serrano.

A Beija-Flor já foi de Nilópolis; hoje, é o contrário, Nilópolis é que é da Beija-Flor. Na escola brilham estrelas como Selminha Sorriso e Neguinho da Beija-Flor, duas das maiores personalidades da vida cultural brasileira. Até hoje estendemos um imaginário tapete vermelho (no caso, verde e rosa) cada vez que ouvimos Cartola e Nelson Cavaquinho.

Numa sociedade tão elitista e racista, em que valores da cultura branca são tão exaltados, seria muito legal que mestres e componentes de baterias fossem às escolas de suas comunidades mostrar o que fazem, e como fazem. O mesmo em relação a passistas, carnavalescos, aderecistas, escultores, enredistas, carpinteiros.

Crianças que nascem em locais marcados pela violência, que são apresentados ao Estado pela atuação da polícia, que têm tiroteios como trilha sonora, que ouvem seguidas referências depreciativa às suas comunidades precisam saber que nelas houve e há muita gente bamba, admirada em todo mundo.

Outro ponto importante seria tratar da mitologia de matrizes africanas e indígenas, algo tão ressaltado pelas escolas. Não se trataria de proselitismo religioso, mas de conhecer mitos tão relevantes quanto os presentes nas tradições grega e romana — ninguém precisa acreditar em Zeus, Atena e Apolo para estudá-los. O mesmo princípio deve ser aplicado a Oxalá, Xangô e Iansã. Não podemos negar uma herança cultural tão forte e tão presente.

Nas últimas décadas houve a publicação de dezenas de livros que tratam das escolas e de seus personagens, universidades como a Uerj mantêm centros especializados em Carnaval. Há uma rica produção acadêmica que precisa ser democratizada, há milhares de talentos que precisam ser mais conhecidos e reverenciados — e há milhões de crianças que terão ainda mais motivos para se orgulharem de suas comunidades, de suas histórias e de seus antepassados.

 

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