Por: Fernando Molica

A caça à baleia da democracia

Presença de homem com faca preocupa assessoria de Bolsonaro | Foto: Valter Campanato/Agência Brasil

As investigações da Polícia Federal mostram que Jair Bolsonaro, suspeito de importunar uma baleia jubarte, molestou, melindrou, atormentou, perturbou e feriu algo ainda maior, a democracia brasileira. As provas e evidências recolhidas evidenciam que o então presidente, fiel às posições que sempre defendeu, conspirou de maneira explícita para promover um golpe de Estado.

O material entregue à Procuradoria-Geral da República e ao Supremo Tribunal Federal demonstra também o descomprometimento de parte da elite militar com a soberania popular. As ofensas do general Braga Netto dirigidas a colegas que honraram suas fardas ao recusarem a trama golpista são um ataque à compostura, ao respeito e à lealdade sempre destacadas em notas das Forças Armadas. Um atentado ao pundonor, para usar linguagem castrense.

Acostumados com benesses historicamente conquistadas graças à tutela que exercem na vida brasileira especialmente depois da Proclamação da República, setores importantes das Forças Armadas não abrem mão do poder autoconcedido de definir o que é melhor para o país. Como ressalta o historiador Paulo César Gomes na edição de hoje do Correio Bastidores, militares estiveram presentes em todas as crises político-institucionais da República, algo intolerável em qualquer democracia.

Contaminados por um anticomunismo que resiste à evidência histórica do fim do comunismo, melindrados com a criação da Comissão da Verdade por Dilma Rousseff,  militares resistem até em reconhecer a obviedade da implantação de uma ditadura em 1964: 60 anos depois da deposição do presidente constitucional, a sociedade brasileira ainda é obrigada a conviver com a possibilidade de, a cada 31 de Março, funcionários públicos fardados decidirem se vão ou não emitir notas para comemorar a quebra da legalidade.

Militares conseguiram garantir impunidade aos criminosos que agiram nos porões da ditadura, foram responsáveis pela não apuração do atentado terrorista ao Riocentro (ocorrido depois da anistia) e ainda conquistaram privilégios na Assembleia Nacional Constituinte: impuseram um artigo, o famoso 142, que deixa margem para dúvidas sobre seus limites institucionais.

Embarcaram de cabeça na candidatura presidencial de um ex-capitão indisciplinado, que fora obrigado a pedir para sair da carreira militar. Em 1988, editorial do Noticiário do Exército afirmou que Jair Bolsonaro e outro capitão "faltaram com a verdade e macularam a instituição militar" — 30 anos depois, o dito ficou pelo não dito. 

Em 2018, aproveitaram a porteira escancarada por tuítes contra Lula publicados pelo então comandante da Força, general Eduardo Villas Bôas, para apoiar Bolsonaro. Na época, alegaram inconformismo com a corrupção — na prática, apenas contra aquela que remetia ao PT. 

Ao associar indisposição para o combate à decisão do comandante do Exército, general Freire Gomes, de não entrar na trama golpista, Braga Netto, então candidato a vice-presidente na chapa de Bolsonaro, reiterou um dos graves equívocos do Exército: o de considerar que a luta política é um campo de batalha de verdade.

O então ministro da Defesa, general Paulo Sérgio Nogueira, cometeu a mesma bobagem ao utilizar termos militares — linha de contato, linha de partida —  para definir uma disputa que deveria passar longe de suas preocupações. O Brasil, ainda bem, não se envolve há décadas em conflitos bélicos, mas isso não dá aos fardados de ocuparem o tempo livre se metendo onde não devem. 

A investigação da PF abre uma oportunidade única para o país discutir o que quer dos militares, que precisam ser subordinados ao poder civil. O desperdício desta oportunidade histórica será algo imperdoável.

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