Por: Fernando Molica

Fé na cidadania

Fiéis na periferia buscam acolhimento e direcionamento na fé, principalmente nas igrejas evangélicas | Foto: Agência Brasil

Se quiser mesmo conquistar uma parcela dos evangélicos, o governo petista deve focar menos na fé e mais numa cidadania que se mostre generosa e parceira. A ascensão dessas igrejas é resultado de combinação de busca de acolhimento e de esperança num país que em meio a um processo vertiginoso de urbanização deixou muita gente órfã de referências, grana e valores.

A religiosidade não representa necessariamente um desafio ao poder político e civil. Este tipo de disfunção e de confusão de papéis tende a ocorrer principalmente em sociedades em que as pessoas não se consideram representadas na estrutura de poder.

Gente alijada do acesso à educação e aos sistemas de saúde, obrigada a morar em favelas ou em periferias das grandes cidades, que se vê discriminada pela cor da pele e/ou condição social. Pessoas que, no Brasil, passaram a identificar na Igreja Católica algo distante, opressor, isolado da vida real; uma instituição de templos que passam a maior parte do dia fechados, em que o acesso ao poder está reservado para uns poucos.

Entre os anos 1960 e 1980, parte da Igreja Católica buscou alternativas sociais e políticas que seriam sintetizadas na Teologia da Libertação, que pregava a redistribuição dos bens e da renda. Alvejada pelo Vaticano, abalada pela crise do socialismo, essa Igreja também seria vítima de uma mudança em boa parte do seu rebanho. Sem paciência por uma redenção apenas no Reino dos Céus, irritados com a pobreza crônica, muitos se identificaram com a promessa de prosperidade imediata.

Um dos principais líderes neopentecostais do país, Edir Macedo repetiu que Jesus prometera vida em abundância: cabia aos seus seguidores cobrarem essa promessa, desde que se mostrassem generosos. Não era mais o caso de repartir o pouco pão disponível, de buscar saídas coletivas, mas de sonhar com alternativas individuais que apontavam para um caminho melhor: riqueza passou a ser vista como uma bênção.

Presente em cada canto do país, essas igrejas também demonstram apoio em momentos de tragédias e de fome, marcam presença na ausência de um Estado distante, dominado por grupos que tratavam de privatizar frutos que deveriam ser públicos.

Muitas dessas denominações também oferecem bússolas morais para tantos que se veem perdidos em meio a mudanças bruscas nos costumes que não conseguiam processar. A sucessão de "nãos" — beber, usar drogas, vestir algumas roupas — permite a recuperação de algum sentido, ainda que limitado e potencialmente preconceituoso. Trata do certo e do errado, encaixa-se na dualidade céu e inferno.

Esse processo seria estimulado por muitos que souberam se aproveitar da fé da milhões de pessoas, que enriqueceram muitas vezes às custas de ofertas quase que arrancadas de quem apenas buscava arranjar um jeitinho de viver melhor e que passou a atribuir a Jesus — e não a políticas públicas — qualquer progresso em suas famílias.

Não se pode questionar quem diz que sua vida melhorou depois de entrar para essa ou aquela igreja, cada um sabe de si. Mas é possível apresentar instrumentos e possibilidades laicas para que pessoas se convençam de seus direitos, dos deveres do Estado e da sociedade. Isso tudo é fundamental não para questionar a fé, mas para recuperar e estimular a crença no poder de cada cidadão.

 

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