Por: Fernando Molica

O pessoal dos direitos desumanos

Policiais rodoviários trancaram Genivaldo Santos na traseira de uma viatura da corporação | Foto: Reprodução

Já que boa parte da população brasileira condena os direitos humanos, sugiro a criação da expressão direitos desumanos. Serviria para classificar todos aqueles que, no fim das contas, negam seus próprios direitos. Como disse alguém, é como se cachorros rosnassem contra direitos caninos.

Na ditadura, direitos humanos eram citados na defesa de presos políticos torturados. Depois, passaram a ser mencionados com maior ênfase também na tentativa de impedir maus-tratos aos presos comuns.

Foi aí que o caldo começou a entornar. Para muita gente, quiçá a maioria da população, era até aceitável defender que presos políticos, jovens universitários, quase todos brancos e de classe média, fossem preservados das sevícias. Por mais esquisitos, cabeludos, subversivos e comunistas que fossem, eram gente como a gente.

Mas já não havia qualquer tolerância com jovens pretos, moradores de favelas, muitos deles netos de ex-escravizados. Esses tinham mais é que apanhar como seus avós.  A violência contra os mais pobres — não necessariamente bandidos — faz parte de nossa história, transformou-se em norma.

Acuados pela violência, muitos cidadãos passaram então a ironizar o conceito de direitos humanos, equiparado à defesa de bandidos. "Direitos humanos para humanos direitos", propagaram aqueles que pela posição social ou pela cor da pele se achavam (se acham) acima da violência do Estado. Alguns só despertaram para os problemas de nosso cruel sistema penitenciário quando viram seus semelhantes presos por participação no 8 de Janeiro.

A conotação pejorativa de uma conquista da civilização como os direitos humanos, precisa ser compensada e, mesmo, vingada. Daí a proposta dos direitos desumanos, conceito que poderia ser colado na testa de todos aqueles que, com seus atos e omissões, colaboram para a barbárie e para a covardia, incentivam práticas incompatíveis com o papel de agentes do Estado — homens e mulheres que arriscam suas vidas todos os dias e têm o direito de exercer sua profissão de forma correta.

Diante de casos como o de Genivaldo de Jesus Santos, morto em Sergipe por policiais rodoviários, pessoas indignadas poderiam dar entrevistas gritando: "Cadê o pessoal dos direitos desumanos para defender os assassinos?". A mesma provocação poderia ser feita em dois casos recentes, a agressão, por PMs mineiros, a um motociclista e a seus amigos e parentes. A regra também se aplicaria em protestos contra os policiais paulistas que dispararam bala de plástico contra um bebê. Dá até até pra ouvir a ironia: "Nessa hora, os direitos desumanos não aparecem..." Valeria também o "Gosta de policial agressor ou assassino? Leva pra casa."

A ideia de direitos humanos não é nova. A Enciclopédia Jurídica da PUC-SP cita documentos como a "Magna Carta Libertatum", de 1215. Em 1776, a Declaração de Independência dos Estados Unidos consagrou a igualdade entre os homens — escravizados eram bem menos iguais, mas a hipocrisia também faz parte da história. A Revolução Francesa foi na linha dos americanos e, em 1948, a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão consolidou a ideia de que todos precisamos ser protegidos da opressão, inclusive daquela praticada pelo Estado. Não tem jeito, para que os direitos de cada um de nós sejam respeitados é preciso que isso ocorra de maneira ampla, geral e irrestrita.

 

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