Por: Fernando Molica

Desde que o samba é samba

Estátua de Cartola na entrada do Museu do Samba, na Mangueira. | Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

Comemorado no último sábado, o Dia Nacional do Samba tem uma história curiosa e que confirma sua importância como principal gênero musical do país, algo que tanto nos ajuda a caracterizar como povo. A data — 2 de dezembro — marca o dia em que Ary Barroso pisou em Salvador pela primeira vez, em 1960. Em 1938 ele compusera "Na Baixa do Sapateiro" sem nunca ter ido à Bahia.

Animado com a presença do compositor, o vereador soteropolitano Luís Monteiro Costa, em 1964, conseguiu que a data passasse a ser chamada de Dia do Samba. Ou seja: o evento foi criado na capital mais negra do Brasil para marcar a visita de um mineiro (de Ubá), branco, radicado no Rio de Janeiro, outra matriz do samba. 

Essas curiosidades culturais e geográficas ajudam a perceber a força de um ritmo que, com suas tantas variações, está presente em praticamente todo o Brasil. Chega a ser uma espécie de sinônimo do país.

Até por esta sua característica nacional, o samba é tão vaidoso e autorreferente. São incontáveis as vezes em que a palavra "samba" aparece nas letras de tantos e tantos compositores: desde que o samba é samba é assim. Mesmo os bossanovistas faziam questão de se vincularem ao ritmo que adaptaram para a pegada jazzística — o terreiro do samba é amplo e generoso, comporta muitas notas, versões e batidas.

Calejados pela pobreza que afeta a maior parte da população brasileira — inclusive músicos, compositores e passistas —, muitos sambistas gostam de associar samba à ideia de resistência. Cantar sambas seria assim uma forma de cavar trincheiras musicais contra invasões estrangeiras e, mesmo, nacionais, como a sertaneja.

Respeitemos a visão, mas o samba é muito mais referência do que resistência — esta, uma palavra que remete a sacrifício. Não se pode negar o sufoco de tanta gente para viver da música, a busca de reconhecimento, uma luta que se confunde com a briga contra o racismo e contra a perseguição do Estado.

Mas o samba é bem mais do que isso, marca e exalta valores fundamentais, por meio dele tanta gente bronzeada mostra seu valor, pessoas que nos emocionam, enlevam, geram tanta beleza e prazer. Do samba nasceram as agremiações que fazem um espetáculo inacreditável. Um povo que faz algo tão complexo e belo quanto o desfile de escolas de samba não tem o direito de não dar certo.

O samba acabou usado pelo Estado Novo para forjar o rígido compasso de uma unidade nacional, foi veículo de exaltação de outra ditadura e, voz do morro, embalou a afirmação de identidade e a busca de uma redenção social.

Mas o grande viés político do samba tem a ver com sua própria existência, com seu enraizamento e com sua renovação. Uma forma de expressão criada por negros pobres que se transformou na mais influente trilha sonora de um país racista, desigual e injusto. O samba olha para trás e aponta para o futuro, o samba cura e constrói, o samba é o nosso dom. 

 

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