Imagine uma cidade brasileira que restringisse, digamos, a presença de negros, indígenas e homossexuais — eles não poderiam andar livremente pelas ruas e só conseguiriam circular em condições especiais. Este tipo inimaginável de preconceito existe em Paraty em relação às pessoas com deficiência, cadeirantes em especial.
O calçamento de pedras das ruas é belíssimo, mas representa um obstáculo praticamente intransponível para os que não conseguem caminhar sobre ele. De um modo geral, as cidades brasileiras não são acessíveis, impedem um direito básico da cidadania, o de ir e vir. Mas Paraty é um caso à parte, um caso particular de exclusão, algo que contrasta com a beleza e com o abraço que os casarões parecem nos oferecer, um carinho negado a tantas pessoas.
Nas suas últimas edições, os organizadores da Flip — Festa Literária Internacional de Paraty — têm elaborado uma programação cada vez mais inclusiva; há também um esforço para que o evento seja integrado à cidade, crie raízes, interaja com a população local. As diversas mesas paralelas, que ocorrem em espaços alternativos contribuem para a sensação de diversidade e de acolhimento. Mas essa variedade não é compatível com um espaço físico que, apesar de tão belo e charmoso, impõe tantos limites.
Ano passado, numa conversa na Casa Sesc, o escritor carioca Carlos Eduardo Pereira ("Enquanto os dentes", "Agora agora) ressaltou sua dificuldade para circular na cidade. Cadeirante, este ano ele conseguiu autorização para entrar de carro no Centro Histórico de Paraty, o que contorna, mas não resolve o problema. Ele e outras pessoas nas mesmas condições têm o direito de passear pela cidade como qualquer outro cidadão — pagam impostos também para isso.
Por mais que seja complicado intervir numa cidade tombada, apenas a falta de interesse explica a ausência de uma solução. A prefeitura diz procurar uma saída junto ao Iphan, fala em instalar rampas em corredores culturais. Mas isso já deveria ter sido pensado e feito há muito tempo.
Nada pode ser visto como imutável, cidades, por mais preservadas que sejam, têm que refletir a evolução dos tempos. Os elevadores e escadas rolantes instalados no Corcovado e os mecanismos de acessibilidade presentes nos ônibus urbanos demonstram isso.
Há sempre várias maneiras de se olhar a história. Os mesmos casarões de Paraty que testemunham a riqueza do ciclo do ouro representam também a lembrança da escravidão. Foram homens e mulheres escravizados que ergueram aqueles prédios, que colocaram aquelas pedras nas ruas, que lá foram aprisionados e castigados.
O mesmo se aplica ao calçamento das ruas. As pedras que marcam um tempo, que tanto nos ensinam, são também exemplos da exclusão, revelam beleza e também gritam que a cidade não é para todos. É fundamental acabar com essa forma de discriminação, não se pode negar o exercício de um direito básico de cidadania.