Por: Fernando Molica

Festa e livros

Uma ponte em Paraty, decorada para o evento FLIP. | Foto: Arquivo pessoal

Um dos muitos grandes acertos da criação da Flip, que teve sua primeira edição em 2003, foi chamar o evento de festa — Festa Literária Internacional de Paraty — e não de feira, congresso, conferência ou encontro. A ideia de uma celebração em torno de livros foi fundamental para quebrar a indevida sisudez com que a literatura costuma ser tratada.

Ainda mais num país tão desigual, que desde sempre procura, de maneira premeditada, limitar o acesso da maioria da população à educação e ao conhecimento formais, livros acabaram sendo identificados com uma elite que dispunha de tempo e de recursos para consumi-los e escrevê-los. Um processo que reforçou a ideia de que leitores são aqueles caras esquisitões, isolados do mundo e dos prazeres da vida.

Vale ressaltar: acima de tudo, livros são fonte de prazer, de alegria, de aventura, de diálogo, de possibilidade de conhecimento do outro. Livros celebram, promovem encontros, geram conversas, estimulam divergências necessárias — a sociedade não pode pensar de forma unânime —, estimulam o contraditório.

Ao classificarem de festa aquele que se tornaria o mais importante evento literário do país, os criadores da Flip reforçaram que a seriedade não é adversária da comemoração; pelo contrário, são conceitos complementares. Isso se prova, a cada edição, nos bares e esquinas da cidade, frequentados por tantos escritores e leitores.

A escolha de Paraty para sediar o evento foi outro acerto. Cidade que acabou preservada graças a um isolamento secular, a cidade teve a sorte que seu redescobrimento — gerado pela abertura da Rio-Santos — ocorreu num momento em que já havia entre nós um certo consenso em torno da necessidade de preservar testemunhos do passado, algo fundamental para a discussão do futuro. O charme dos casarões foi decisivo para dar à Flip a aura que conseguiu conquistar.

Mas tanto riso, tantas boas e profundas conversas e tanta alegria não escondem que a Flip e Paraty estão no Brasil. Durante o evento, o Centro Histórico ganha ainda mais um ar de fantasia, de algo meio apartado do país pobre que fica do lado de lá das correntes que protegem as ruas.

Nos últimos anos, os responsáveis pela Festa atentaram para a necessidade de torná-la mais inclusiva. Programações paralelas foram incentivadas, as mesas oficiais passaram a contar com uma participação significativa de negros e de mulheres. Mas a pobreza dos indígenas que vendem artesanato no caminho serve de alerta para a chacina histórica dos povos originários.

Evidentemente, não cabe a um evento literário resolver problemas como os que há mais de meio milênio se acumulam por aqui, não é possível contornar as mais do que presentes contradições brasileiras. A Flip tem um certo viés elitista não porque quer, mas porque o país assim a obriga. E o evento trata de apresentar e discutir as tantas e necessárias questões.

Mas tão importante quanto falar de literatura e de artes, de trazer tantos pontos de vista diferentes, é fazer a festa, quebrar o estigma de chatice tantas vezes associado à literatura. O calçamento irregular de Paraty é outro elemento interessante: reforça que não há trajetos fáceis, que há sempre pedras no caminho, que é preciso estar atento e forte. Mas nada disso é capaz de interromper a necessidade de festa, de comemorar a vida.

 

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