Por: Fernando Molica

O recado foi geral

Como fugir do sistema atual? Privatizar ou não? | Foto: Divulgação

Mais do que um recado apenas para a esquerda, a vitória do extremista Javier Milei na Argentina representa uma mensagem clara para os tantos políticos — de todas as tendências — que ajudaram a criar e consolidar a imagem do Estado como organização destinada a manter e aumentar privilégios de determinados grupos.

É bem improvável que o presidente recém-eleito vá mesmo romper com um sistema que, muitas vezes, parece existir só em benefício de alguns. O fundamental é que Milei conseguiu a façanha de ser identificado como alguém capaz de romper com um Estado privatizado por interesses que vão das incontáveis tendências peronistas às demandas de um setor empresarial também agarrado ao casco público.

Claro que seu foco principal é a esquerda amalgamada com a difusa e sempre adaptável herança de Juan Domingo Perón (1895-1974), um guarda-chuva capaz de abrigar os mais variados personagens políticos. Não é de hoje que a direita argentina critica a visão estatizante, a lógica corporativa e a defesa de privilégios estatais que emanam do ideário do ex-presidente. Algo, em menor grau, também presente na tradição da esquerda brasileira.

Mas quem disse que, lá como aqui, setores que se apresentam como liberais também não fazem do Estado um grande instrumento de promoção e defesa de seus interesses privados? Não dá pra chamar de bandeiras da esquerda os intermináveis incentivos fiscais a grandes setores, os privilégios sempre renovados do Poder Judiciário e de outras instituições do universo jurídico, como o Ministério Público.

Ou alguém acha razoável que esses funcionários públicos tão bem remunerados possam, por exemplo, tirar dois meses de férias? O mesmo vale para os militares que, além de incontáveis vantagens, conseguiram transformar em vantajosa para eles uma reforma da previdência que limitou ganhos de praticamente todo o resto da população.

Beneficiados pelo mercado de compra e venda de votos no Congresso, políticos acumulam cada vez mais poder e recursos, num governo de direita ou de esquerda. A Codevasf virou símbolo de estatal ocupada por interesses específicos de caciques que usam dinheiro público para o cultivo e de interesses que, com frequência, são pra lá de duvidosos. 

Esta percepção de privatização do Estado (conceito que ouvi pela primeira vez de Roberto Freire, então candidato a presidente pelo PCB em 1989) não é nova: Fernando Collor de Mello e Jair Bolsonaro chegaram ao poder prometendo combater o mau uso do nosso dinheiro. Collor foi defenestrado ao montar esquemas que  contrariavam interesses estabelecidos (até na corrupção há lugares marcados nas janelinhas); Bolsonaro, para não receber cartão vermelho, teve que se compor com os suspeitos de sempre — que, hoje, batem ponto no governo Lula.

Movido por um sebastianismo platino, pela nostalgia de uma Argentina que sobrevive nas imagens em preto e branco e nos tangos de Gardel, dono de um plano econômico difuso, Milei tende a fracassar como seus antecessores, de esquerda ou de direita. Ele, agora, se aproveita de um descrédito com as instituições democráticas e o sistema representativo. Mas sabe que está na fila para ser mais um a solapar a confiança do eleitor. Seu maior conselheiro político — o fantasma de seu cãozinho de estimação — já deve ter latido isso pra ele.

 

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