Por: Fernando Molica

Cúmplicidade e crime

Carga de mais de 100kg de cocaína é apreendida durante megaoperação na Maré | Foto: Reprodução

A prisão, no Rio, do terceiro-sargento da PM Yuri Luiz Desiderati Ribeiro que transportava 150 quilos de pasta-base de cocaína  apenas comprova uma obviedade que tantos fingem não ver: sem a cumplicidade de agentes do Estado seria impossível que bandidos acumulassem tantas armas, munição, drogas e poder.

Ribeiro foi preso em flagrante por policiais civis quando, provavelmente, transportava a carga retirada de uma das favelas onde mais de mil agentes promoviam mais uma das megaoperações que aumentam o pânico, impedem o funcionamento de escolas e interrompem, por algumas horas ou poucos dias, a venda de drogas e outras atividades ilegais.

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Carga de mais de 100kg de cocaína é apreendida durante megaoperação na Maré | Foto: Reprodução

Dados disponíveis na página do Ministério Público do Rio mostram que, em sete dias, de 28 de setembro e 4 de outubro, houve 43 operações policiais em favelas,  11 apenas no último dia 3. Isso dá uma média de 6,14 por dia, uma projeção de 2.241 por ano. Ninguém de bom senso acredita que em pelo menos uma dessas comunidades o tráfico de drogas ou a atuação de milicianos deixou de ocorrer. A polícia pode alegar que o domínio territorial por parte de bandidos seria ainda maior se não houvesse a pressão do aparelho repressivo. O argumento é razoável, mas não é suficiente para justificar tantos investimentos em segurança pública e resultados tão pífios. Comandada pelo general Braga Netto, a intervenção federal na segurança do Rio efetuada em 2018 custou R$ 1,8 bilhão. 

Não é simples ao menos equacionar o problema da segurança pública, transformar a situação em aceitável. Há fatores decisivos de ordem econômica e social, o país é injusto, tem uma absurda concentração de renda, teima em seguir o modelo de exclusão cultivado e renovado desde a época colonial. O Brasil insiste em não amenizar a herança escravocrata. As desigualdades e a falta de esperança em uma vida melhor são combustíveis para o desespero, para a busca de alternativas fora da lei e dentro do crime.

Mas não dá pra esperar o fim das injustiças sociais para se ter uma situação melhor na segurança pública. E isso passa pelo abandono dos discursos fáceis, das histórias de tiro na cabecinha, de discursos como o do combate sem trégua à bandidagem, do comigo bandido não vai ter vida fácil. Essas frases e expressões são repetidas ao longo de décadas para justificar passividade e, em alguns casos, cumplicidade. Enquanto as ameaças eram ditas, organizações criminosas nasceram, cresceram e se estruturaram.

A tão propalada defesa da violência policial é, na prática, estímulo não apenas ao extermínio, mas também à corrupção. Como qualquer outro profissional — médicos, operários, jornalistas, professores, cozinheiros — policiais precisam saber que não têm poderes ilimitados, que podem ser punidos em casos de abuso e de descumprimento de regras.

Ao dar carta branca para a polícia, a sociedade vira parceira de sua própria danação, abre as portas para o descalabro, permite que políticos se associem ao crime que dizem combater. Os policiais que prenderam o sargento Ribeiro merecem todos os aplausos, mas agora é hora de aprofundar as investigações, apurar como aquela droga chegou a uma favela, às suas mãos. É preciso descobrir se há outros agentes do Estado envolvidos. E vale insistir: mais importante do que apreender armas em favelas é impedir que elas cheguem até lá.

 

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