Independentemente dos motivos que levaram à chacina dos médicos na Barra da Tijuca, no Rio, o crime só ocorreu graças à certeza de impunidade de mandantes e executores.
Os homicídios ocorreram num lugar nobre da cidade, área controlada por câmeras e quase em frente a um hotel cinco estrelas, que provavelmente mantém algum tipo de segurança no entorno. Mas os assassinos não vacilaram, devem saber que, no Estado do Rio, eles têm 96,5% de chances de não serem condenados até quatro anos depois do crime. O percentual sobe para 98% caso o homicídio tenha sido cometido dois anos antes.
Os dados são do Instituto de Segurança Pública, órgão do governo do Rio, que analisou inquéritos policiais, denúncias feitas pelo Ministério Público e sentenças judiciais de 2019 e 2020 relativos a homicídios cometidos em 2015 e 2018.
Em 2020, a polícia considerava ter resolvido 21,1% dos homicídios cometidos em 2018. O percentual sobe para 34,7% para os assassinatos ocorridos em 2015 e investigados até 2019. O índice de resolução no período entre 2018 e 2020 cai para 12,2% quando são descartados os casos de flagrantes, em que não houve necessidade de investigação detalhada para se chegar aos autores.
Até 2020, promotores encontraram elementos para denunciar à Justiça em apenas 11% dos supostos autores de homicídios ocorridos em 2018. A taxa subiu para 14,6% no período de quatro anos entre o crime e denúncia. Os índices de condenação foram de 2% e 3,5% (respectivamente, até dois e quatro anos depois do crime).
Os percentuais reforçam o erro, predominante em todo o país, de se basear a segurança pública em operações pontuais, como as frequentes incursões em favelas e não em outras vertentes que priorizem, entre outros pontos, a investigação policial.
As taxas de homicídios no Estado caíram muito entre 2003 (45 para cada 100 mil habitantes) e 2022 (19 por 100 mil habitantes), um processo que começou a ficar mais evidente a partir de 2010 (30 por 100 mil).
As quedas são importantes e precisam ser ressaltadas, mas as taxas de assassinatos por 100 mil habitantes no Rio e no Brasil são muito piores que as registradas não apenas em países desenvolvidos (6,8 nos Estados Unidos; 1,11 na França; 0,80 em Portugal), mas também em nossos vizinhos (8,9 no Uruguai; 4,62 na Argentina e 7,83 no Paraguai).
A naturalização das mortes em favelas e em regiões periféricas é decisiva para ações como as que vitimaram os médicos. Qualquer morte — de bandidos, de cidadãos inocentes ou de policiais — contribui para aumentar a banalização dos casos e alimentar o fluxo da violência. A não apuração de assassinatos como o da vereadora Marielle Franco e o do policial Marcos Vieira de Souza, o Falcon (personagem ligado ao submundo), indicam obstáculos no caminho da Justiça.
Os homicídios ocorridos na Barra têm relação com a tolerância, a impunidade e com a facilidade de acesso a armas e munição. São também herdeiros de uma cumplicidade histórica com atividades criminosas, como a longa história de corrupção e conivência entre agentes do Estado — não apenas policiais — e bicheiros. Uma parceria que, com a criação e proliferação das milícias, nascidas dentro da máquina pública, estimulou escritórios do crime pelo estado.