Maior intérprete das alegrias, tristezas, amores, esperanças e descaminhos do Rio, Zeca Pagodinho deveria ser tombado como patrimônio carioca e de Xerém. Assistir a um show do cantor e compositor é como imergir neste Rio que nos afaga e assusta, que nos carrega em sua corrente.
Herdeiro de uma tradição musical que remete principalmente a Noel Rosa, mas também a Cartola, Wilson Baptista, Nei Lopes & Wilson Moreira, Ismael Silva, Cyro Monteiro, João Bosco & Aldir Blanc e a tantos e tantos outros, Zeca transita naquele sempre invejado território do sofisticado e do popular.
As músicas que ele canta ou compõe tratam do cotidiano, mas não se limitam a descrever este dia a dia de maneira literal, como numa redação escolar musicada, algo que virou tão comum. Oferecem sempre uma sacada original, um novo jeito de ver a vida.
Como não sorrir e não nos identificarmos com os versos irônicos, mas bem-intencionados, na declaração de princípios de "Não sou mais disso", de Zeca e Jorge Aragão?: "Eu deixei de ser pé de cana/ Eu deixei de ser vagabundo/ Aumentei minha fé em Cristo/ Sou bem quisto por todo mundo".
Como em outras músicas de seu repertório, temos um narrador em primeira pessoa, afirmativo em suas paíxões, trabalho e fé. O amigo que, no bar, nos fala da vida, dos sonhos, dos caminhos e que ressalta a necessidade de ficarmos sempre alertas, afinal, camarão que dorme a onda leva.
Os amores de Zeca são intensos; ele confessa que para conquistar a amada fez mandiga, foi à ginga de um bom capoeira ("Verdade", de Nelson Rufino). Neste mesmo botequim imaginário, ele exalta a amizade ("Na hora que a gente menos espera/ No fim do túnel aparece uma luz/ A luz de uma amizade sincera /Para ajudar carregar nossa cruz" ("Quando a gira girou", Serginho Meriti e Claudinho Guimarães).
Num gesto hoje ainda mais político, não vacila em falar de uma fé brasileira, cheia de divindades que convivem tão bem. Acende velas para São Jorge/Ogum ("Pra São Jorge", Pecê Ribeiro) e deixa evidente sua ligação com os orixás em "Minha fé" (Murilão da Boca do Mato): "E nas mandingas que a gente não vê/ Mil coisas que a gente não crê/ Valei-me, meu Pai, Atotô, Obaluaê".
Zeca também atua no que a gente vê. Tem o jeito que nos traduz, garante grana para muitos compositores ao gravá-los, não vacilou ao, no comando de um triciclo, liderar ajuda para vítimas de enchente em Xerém. Exemplo de vida que faz tabelinha com a obra, Zeca é patrimônio que precisa ser tombado para ficar sempre entre nós.