Por: Fernando Molica

A PPP do crime

Castor de Andrade em grande estilo. | Foto: Reprodução

A violência no Rio de Janeiro não é uma sequência de fatos chocantes e isolados, mas resultado de décadas de conivência e cumplicidade entre quadrilhas e setores públicos. A atividade desses traficantes/milicianos não é algo externo ao Estado, faz parte de sua estrutura.

Muitos desses bandidos não são personagens e grupos distantes, periféricos: integram a máquina institucional. Participam da versão fluminense das tão faladas PPPs, Parcerias Público-Privadas. Uma sociedade ilimitada que, ao longo dos anos, tem rendido lucros e votos pra muita gente. 

Essa presença impede qualquer tentativa de personalização, de indicação desse ou daquele inimigo público. Há muitos anos que a polícia prende ou mata incontáveis chefes ou supostos comandantes desta ou daquela facção, um tipo de repressão que serve apenas para favorecer a ascensão de outros líderes.

Como já disse um ex-chefe de polícia, a atuação estatal funciona, na prática, para fazer uma regulação do tráfico de drogas (na época não havia milícias). De um jeito ou de outro, garante ou desequilibra poderes dentro de favelas e bairros. 

Indo bem longe na história, daria pra incluir o tráfico de escravizados baseado na então capital da Colônia como marco inicial dessa PPP. Mas dá pra ser mais objetivo e citar, como exemplo dessa associação, a  convivência entre bicheiros, policiais e políticos, algo que atingiu patamares ainda mais elevados durante a ditadura.

Além de corromper grandes setores da máquina pública, o jogo do bicho antecipou e consolidou entre nós a característica do domínio territorial, que hoje também marca atividades de traficantes-milicianos. Um domínio que não é fruto apenas de conquistas bélicas; é também resultado de alianças com integrantes da máquina estatal.

A troca de proteção por votos — e por outras formas de compensação — é marcante num estado em que deputados influenciam até na escolha de autoridades da área de segurança. Territórios têm donos: não é de hoje que qualquer candidato a cargo público sabe onde pode e onde não pode pedir votos. 

Em 2008, o relatório final da CPI formada na Assembleia Legislativa do Rio para investigar milícias insistiu na necessidade de reprimir os mecanismos de financiamento dessas organizações. Passados 15 anos, pouco foi feito.

O desabamento de um prédio em área miliciana na Barra da Tijuca gerou operações de controle desse tipo de construção, mas, de um modo geral, o poder público, em diferentes governos, evitou incomodar essas quadrilhas. Milicianos continuam a controlar vans,  venda de botijões de gás, gatonet, garrafões de água, cigarros contrabandeados — a venda de drogas é apenas mais uma de suas atividades.

Esses bandos deram passos além: não se contentaram mais em apoiar candidatos, passaram a lançar seus próprios nomes para cargos legislativos e prefeituras. O poder das quadrilhas se retroalimenta quando instalado em gabinetes oficiais.

É impensável imaginar que o Estado brasileiro não tenha capacidade de fazer frente a essas quadrilhas; não as derrota porque não quer. Até porque um combate efetivo a tantas estruturas criminosas implicaria numa espécie de confissão não premiada por parte de muita gente. Enquanto não revira suas próprias entranhas, o Estado trata de fazer incontáveis operações policiais para deixar tudo como está.