Cangaço reciclado na terra do sol
Ousada, estrelada por ótimos atores, bem escrita e dirigida, a série "Cangaço novo" (Prime Vídeo) faz mais do que uma síntese de grandes produções brasileiras no cinema e na televisão.
Ousada, estrelada por ótimos atores, bem escrita e dirigida, a série "Cangaço novo" (Prime Vídeo) faz mais do que uma síntese de grandes produções brasileiras no cinema e na televisão. Bebe nessas fontes, mas, como "Bacurau"(2019), de Kleber Mendonça Filho, aponta novos percursos e reinventa um jeito de narrar, dialoga com as profundas mudanças ocorridas na nossa sociedade nas últimas décadas.
Nas primeiras cenas, o uso do preto e branco, o enterro de um cangaceiro e o cenário da caatinga remetem a filmes do cinema novo que procuravam revelar e entender uma realidade nordestina ainda predominantemente rural. O menino Ubaldo que, ensanguentado, corre por entre mandacarus lembra a fuga de Manoel nas cenas finais de "Deus e o diabo na terra do sol" (1964), de Glauber Rocha. O sobrenome de Ubaldo é Vaqueiro — palavra que designa o ofício de Manuel e que acabaria incorporada ao seu nome.
Criada por Eduardo Melo e Mariana Bardan, dirigida por Fábio Mendonça e Aly Muritiba, a série, como resume o título, trata de um novo tipo de banditismo, herdeiro do cangaço que existiu entre o fim do século 19 e as quatro primeiras décadas do século 20. O rural cedeu lugar ao urbano, cavalos foram substituídos por motos e SUVs, os ataques agora têm como alvo, principalmente, agências bancárias.
As formas de exercício do poder também foram atualizadas: no lugar de fazendeiros e coronéis há políticos mais jovens, que mantêm relações com Brasília. Permanecem, porém, questões como diferenças sociais, concentração de terras e desvio de água.
"Cangaço novo" reitera e atualiza temas recorrentes na cultura brasileira, como fé, mitologia e a ideia de um destino do qual não se pode escapar. Levado para fora da cidade ainda criança depois do assassinato do pai, Ubaldo (Allan Souza Lima), já adulto, acaba forçado a retornar para sua terra, onde assumirá seu sobrenome e seu papel social. Ele não conseguirá deixar de ser um Vaqueiro.
Diferentemente do que chegou a ser cultivado há algumas décadas, a série deixa claro que cangaceiros, antigos ou novos, são assassinos e ladrões; na trama há pelo menos um estuprador. Um dos grandes trunfos do roteiro é, porém, mostrá-los como pessoas que enfrentam outros bandidos — não há inocentes nem heróis, mas personagens que optam por uma forma de encarar um universo hostil, injusto e agressor.
"Cangaço novo" exercita uma das grandes possibilidades da ficção, a de mostrar as razões e as emoções do outro, de gerar empatia até com quadrilheiros. Mas o espectador é sempre alertado para os crimes cometidos; entender não significa desculpar ou perdoar.
A série, pelo menos nos seus primeiros capítulos, não cai na tentação de oferecer supostas saídas: mostra conflitos, ressalta novas faces de velhas tensões. O Manoel, vaqueiro, fugiu na direção do mar; Ubaldo, seu neto simbólico, agora corre — também em busca de uma incerta e improvável redenção.
