Por: Fernando Molica

O aborto admitido

A Maternidade x O Aborto | Foto: Reprodução

Números mostram que o aborto é admitido no Brasil — desde que seja clandestino. Em 2021, 150 mil mulheres foram internadas no país para tratar consequências de abortos, quase todos ilegais. No mesmo ano, foram abertos apenas 333 processos ( o que corresponde a 0,22% dos atendimentos ) para apurar o que a lei chama de crime contra a vida.

A discrepância indica que a maioria da sociedade brasileira não classifica de criminosas as mulheres que interrompem uma gravidez. De acordo com a Pesquisa Nacional de Aborto, também feita em 2021, uma em cada sete mulheres, com idade próxima aos 40 anos já recorreu à prática (isso daria cerca de 500 mil casos por ano).

É quase impossível que um adulto não conheça alguém que abortou. Mas, diferentemente do que ocorre em casos de homicídios, poucas dessas pessoas consideram obrigatório denunciar aquela que, pela lei, cometeu um crime.

A hipocrisia é tão grande que, nas famílias, pouco se fala que uma mulher abortou, o verbo utilizado é o "tirar" ("Fulana engravidou, mas tirou", costuma ser a frase). São raríssimos os casos como o ocorrido em Campo Grande (MS). Lá, uma operação policial motivada por reportagem de TV levou ao fechamento de uma antiga clínica de abortos por onde passaram cerca de 10 mil mulheres, pelo menos mil delas estão sendo processadas.

São muitos os argumentos religiosos e ético-morais que condenam a prática do aborto, mas é preciso olhar a questão — bem delicada — por um outro prisma, o que catequistas chamavam de exame de consciência: você, que não admite a descriminalização da interrupção da gravidez, denunciaria uma parente ou amiga pela prática? Considera dever moral e cidadão ir a uma delegacia para comunicar o caso? Você acha mesmo que a mulher que aborta comete um homicídio?

Arrisco dizer que há uma boa chance de que, diante de um caso concreto, em sua própria família, você achar que a grave e nunca simples decisão de abortar é algo de foro íntimo, que diz respeito a uma decisão da mulher. 

Você, homem ou mulher, senadora ou senador, deputada ou deputado, ministra ou ministro do Supremo Tribunal Federal, acharia justo que sua filha ou sua sobrinha fosse levada ao banco dos réus, para ser julgada num tribunal, depois de recorrer a um aborto? Caso discorde da necessidade do processo e da punição não seria o caso de admitir a mudança de uma legislação que não reflete a realidade e que condena tantas mulheres à morte?

Em 2021, pouco mais de 1.500 meninas de 10 a 14 anos foram internadas em consequência de abortos; apenas 8% dos casos ocorreram pelos motivos permitidos para se interromper uma gravidez do Brasil (risco de vida para a gestante, estupro e anencefalia do feto). Você, leitor ou leitora, acha mesmo que essas meninas teriam que ser punidas? 

Em junho, pesquisa do Datafolha mostrou que 52% dos brasileiros discordava, em parte ou totalmente, do direito de uma mulher decidir interromper uma gravidez (45% concordavam, também em parte ou totalmente). O instituto de pesquisa poderia incluir outras peguntas em seu questionário. Sugiro: 1. Você seria a favor de sua filha abortar caso ela engravide de um amigo ou namorado?; 2. Você seria a favor que sua filha, irmã ou sobrinha fosse levada ao tribunal do júri caso recorra a um aborto ilegal?