Ao aprovar o projeto de lei que estabelece o ano de 1988 como referência para o reconhecimento de terras indígenas, o Senado atropelou a interpretação da Constituição feita pelo Supremo Tribunal Federal e reafirmou a tradição brasileira de retirar direitos dos mais pobres, das minorias.
Uma tradição quase atemporal que vem desde que os portugueses aportaram numa terra que tinha donos, foi reafirmada com a criação das capitanias hereditárias e com a escravidão e é mantida e renovada.
O Brasil nunca deixou de cultuar a fé no direito à grande propriedade, terras muitas vezes conquistadas na marra, com a invasão de áreas públicas com expulsão e/ou assassinato de seus antigos donos. Uma crença que não esconde o viés racista.
A mesma sociedade que estimulava a invasão de terras indígenas e descartou a entrega de áreas para os ex-escravizados é a mesma que aplaudiu a vinda de imigrantes brancos, que receberam lotes para cultivar. Esses homens e mulheres fugiram da pobreza em seus países, eram pobres, trabalharam muito, contribuíram bastante para o crescimento do país, mas tiveram uma vantagem que foi negada a quem já estava por aqui.
Caso vire lei, o projeto do marco temporal deverá ser derrubado pelo STF por ir contra ao que diz a Constituição, devidamente interpretada por quem de direito, o próprio Supremo. Mas sua aprovação apenas indica que o Brasil continua a ser um país de poucos donos. No mesmo país que aprova o marco temporal, o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos) facilita a legalização de terras ocupadas de maneira ilegal por grandes fazendeiros. Estes recebem desconto de até 90% para comprar o que invadiram (há também, importante ressaltar, vantagens para pequenos produtores).
A questão do marco temporal vai muito além dos direitos dos indígenas, tem a ver com um projeto de Brasil, país que, deve o início de sua história, foi planejado para poucos. A ameaça sobre um direito assegurado àqueles que tiveram suas terras invadidas contradiz o tão falado e repetido direito à propriedade.
Em abril, o mesmo governador que dá vantagens para antigos invasores prometeu cadeia para quem ocupasse terras. Afirmou que seria duro para garantir o direito de propriedade. Este é um ponto fundamental: como dizia o ex-governador Leonel Brizola, a propriedade é algo tão bom que deveria ser para todos.
Um país não pode ser construído apenas pela imposição de desejos individuais ou setorais. Por maior que seja o Brasil, não haveria território e riqueza suficientes se cada um exigisse a integralidade do que julga ser seu. Não dá para se pensar numa nação se os mais fortes têm uma espécie uma espécie de direito inalienável de passar a boiada sobre os mais pobres. A exclusão praticada e renovada ao longo de 500 anos de história gera consequências evidentes que, todos os dias, são esfregadas na nossa cara. A ameaça aos direitos dos indígenas é uma ameaça a todos nós.