A História, esta senhora de ótima memória e insuperável senso de ironia, fez com que um governo chefiado por um ex-militar viabilizasse um simbólico ajuste de contas que vinha sendo adiado desde o fim da ditadura. É como se as 210 vítimas do regime cujos corpos jamais foram encontrados, imitassem os cadáveres de "Incidente em Antares", romance de Erico Verissimo, e saíssem dos lugares onde foram jogados para infernizar e assombrar a vida de militares.
Até por questões de idade, os atuais chefes militares não participaram da repressão. Mas, mesmo não tendo atuado na caça, tortura e morte de adversários, oficiais evitam admitir que em 1964 houve um golpe e a consequente implantação de uma ditadura: procuram justificar a derrubada do presidente constitucional e citam os atentados, assaltos a bancos e tentativas guerrilheiras de setores da esquerda como álibi para os excessos cometidos por seus antecessores.
Uma posição corporativa e que também têm raízes no fato de que alguns dos atuais oficiais-generais são descendentes de militares que atuaram de maneira abusiva naquele período. Uma postura que prejudica as próprias instituições que dizem defender, o reconhecimento dos erros e brutalidades evitaria que uma sombra permanecesse sobre os quartéis. A Comissão da Verdade criada pela presidente Dilma Rousseff deveria ter sido encarada como uma oportunidade e não como ofensa.
Pelo seu caráter recíproco, a anistia de 1979 impediu que torturadores fossem investigados e punidos, inviabilizou a apuração de crimes cometidos por agentes da ditadura. Em 1981, o Exército fez questão de não investigar o atentado terrorista ao Riocentro e forjou a inocência do capitão Wilson Machado, um dos responsáveis pelo ato (o oficial chegou a coronel e hoje tem vencimentos de general).
Mas a História não perdoa. A conjuntura política-institucional criou uma situação que permitiu a eleição para a Presidência de um ex-oficial que fora constrangido a deixar o Exército. Um militar condenado em primeira instância, acusado de planejar atentados até em quartéis para protestar contra baixos salários (depois, seria absolvido num julgamento que até hoje desperta uma série de dúvidas). Eleito vereador e, depois, deputado federal, Bolsonaro era rejeitado pela cúpula castrense, chegou a ser impedido de entrar em instalações militares.
Em 2018, porém, foi abraçado por fardados de todas as patentes, enfatizou sua condição de oficial da reserva, chegou ao Palácio do Planalto e distribuiu muitas benesses aos antigos companheiros — muitos se deixaram seduzir. Bolsonaro não poderia imaginar que ao patrocinar tantas vantagens e ao arrebanhar fardados para articular um golpe de Estado, estava, enfim, colocando uma bomba de efeito retardado na estrutura militar.
Agora, as Forças Armadas são alvo da esquerda e da direita, oficiais superiores são acusados de crimes, expostos na TV. Como numa vingança urdida por fantasmas dos desaparecidos e viabilizada pelas trapalhadas de Bolsonaro, são chamados de golpistas e até de covardes. Mas têm, pelos caminhos tortos da História, uma nova oportunidade de reconhecer erros e crimes, de expurgar preconceitos ideológicos de seus currículos, de admitirem que não podem se meter na vida política do país.