Morre Glória Maria, ícone do jornalismo e pioneira na TV brasileira, aos 73 anos

Morreu na manhã desta quinta-feira (2), aos 73 anos, a jornalista Glória Maria, vítima de câncer. A informação foi confirmada pela Globo em nota enviada à imprensa

Por Cristina Padiglione

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Morreu na manhã desta quinta-feira (2), aos 73 anos, a jornalista Glória Maria, vítima de um câncer. A informação foi confirmada pela TV Globo em nota enviada à imprensa.

Segundo a emissora, o tratamento que Glória fazia para combater as metástases que existiam em seu cérebro deixaram de fazer efeito nos últimos dias.

Após superar um tumor no cérebro em 2019, Glória Maria voltou a enfrentar o câncer no final do ano passado. Em dezembro, a Globo informou que ela estava afastada da TV para tratar da saúde, mas alegou que isso fazia parte do tratamento contra o tumor cerebral.

A idade a ela atribuída era de 73 anos, mas Glória nunca confirmou. Em entrevista a Mano Brown no podcast Mano a Mano, disse que gostava de driblar a curiosidade das pessoas. "Não tem dados para provar e eu invento. Lá atrás ninguém vai conseguir bater lé com cré porque eu confundi tanto que ninguém vai conseguir fazer a conta. E não é para esconder. É questão de cultura familiar."

Em um tempo em que o jornalismo cobrava envolvimento zero do repórter com seu entrevistado, Glória já tinha a exata dimensão do efeito que a TV provoca nas emoções do telespectador. Muito antes de os influenciadores digitais afetar a linguagem e os critérios do jornalismo, ela já sabia qual era o impacto de se colocar no lugar do púbico.

Por isso, ao apresentar a nova Ferrari de Ronaldo Fenômeno em reportagem para o Fantástico, não fingia que aquela situação era normal. Exibia, sem pudor, o deslumbramento que qualquer um teria ao entrar no carro com o notório craque.

Tampouco fazia questão de disfarçar a alegria de ser enlaçada pelos braços de Julio Iglesias para um breve passo de dança ou a comoção de atender ao pedido de Roberto Carlos por um beijo. "Isso só eu tenho", disse, após oferecer o rosto ao Rei.

Situações como essa faziam com que Glória viralizasse muito antes que esse termo existisse. Ela viralizou de fato em 2016, quando fumou maconha diante das câmeras, em reportagem para mostrar o ritual de fumar "a ganja" na Jamaica. "Eu não sabia o que era. O rei lá do negócio queria que eu caísse, mas não caí. Puxei duas vezes e não caí", disse no Roda Viva, em março do ano passado.

A jornalista nunca trabalhou para outra empresa que não fosse a Globo, onde ingressou ainda em 1970, como estagiária, tendo apresentado sua primeira reportagem em 1971, sobre a queda do viaduto Paulo Frontim, no Rio.

Primeira pessoa negra a conquistar espaço diante das câmeras no telejornalismo brasileiro, Glória foi pioneira como mulher na cobertura de guerra e rompeu a hegemonia branca também na apresentação de programas na principal emissora de TV do país, tendo sido a primeira profissional a entrar ao vivo no Jornal Nacional em cores, em 1977.

Glória comandou o Fantástico entre 1998 e 2007, e mais tarde, o Globo Repórter. Antes disso, foi âncora do RJTV, Bom Dia Rio e jornal Hoje. Como repórter, viajou por mais de 100 países. Cobriu a Guerra das Malvinas, em 1982, e a invasão na embaixada brasileira no Peru por um grupo de terroristas, os Jogos Olímpicos de Atlanta e a Copa do Mundo na França em 1998.

Entrevistou celebridades como Michael Jackson, Leonado Di Caprio, Madonna, Harrison Ford, Nicole Kidman, e viajou com Paulo Coelho pela ferrovia transiberiana até Moscou.

Nascida em Vila Isabel, na zona Norte do Rio, Glória Maria Matta da Silva era filha do alfaiate Cosme Braga da Silva e da dona de casa Edna Alves Matta. Formou-se em Jornalismo na Pontifícia Universidade Católica (PUC-Rio) e entrou na TV Globo como rádio-escuta na editoria Rio da emissora.

Em nota, a Globo lamentou: "Glória marcou a sua carreira como uma das mais talentosas profissionais do jornalismo brasileiro, deixando um legado de realizações, exemplos e pioneirismos para a Globo e seus profissionais."

PRECONCEITO

Fundador da Globo, Roberto Marinho tinha grande apreço por Glória Maria, que namorou seu filho caçula, José Roberto Marinho, com quem morou, ainda jovem. O jornalista Leonêncio Nossa relata, na biografia "Roberto Marinho – O Poder Está no Ar" (Ed. Nova Fronteira), o preconceito que ela enfrentou ao entrar com ele no Country Club, no Rio de Janeiro, ambiente da alta sociedade carioca.

"Papai foi tranquilo. Gostava dela, tinha admiração por ela. Mas eu senti o preconceito no Rio quando estava na companhia dela em lugares públicos", disse José Roberto ao biógrafo. "Aqui, as classes sociais são apartadas."

Em entrevista a Pedro Bial em maio de 2020, Glória confirmou o episódio no Country Club: "Uma coisa que eu nunca falei, levei um susto quando vi isso no livro: o clube inteiro olhando praquela mesa, eu não sabia o que fazer, e não entendi direito ainda aquela maluquice que era o camping, eu não entendia direito. E eu: 'José, vamos embora, todo mundo olhando pra gente'. E eu não sabia se era só porque eu era negra ou se era também porque ele era o filho do Roberto Marinho, mas foi um dos momentos assim mais ruins, mais desagradáveis da minha vida, aquela sensação, eu me sentia como um macaco no zoológico, todo mundo ali, esperando a hora de dar uma banana."

Nessa mesma entrevista a Bial, a jornalista contou que era desprezada pelo então presidente João Figueiredo, que a chamava de "negrinha": "O general Figueiredo não me suportava. Quando ele foi indicado, a gente foi fazer a famosa fala dele na Vila Militar, em que ele dizia: 'para defender a democracia, eu bato, prendo e arrebento'. Eu sou muito boa em português, e ele citou uma coisa da gramática que não existia mais, e eu disse: 'presidente, o senhor me desculpa, mas isso que o senhor citou não existe mais'. Ah, Pedro... [Ele disse] 'Tira essa mulher daqui, tira essa mulher daqui', ele gritava, e eu saí dali escorraçada, e passei a ser o horror do general Figueiredo", contou na ocasião.

"Só que a segurança dele tinha sido do presidente anterior, o Geisel, e todos eles gostavam de mim, então, onde eu chegava, todos eles me davam o melhor lugar, e quando ele chegava, ele me via e falava: 'Tira aquela neguinha da Globo daqui'. E eu passei todo o governo Figueiredo ouvindo 'Tira essa neguinha da Globo daqui!'.

Glória deixa duas filhas adolescentes, Laura e Maria, que adotou ainda crianças, em junho de 2009, após visitar a Organização de Auxílio Fraterno (OAF) em Salvador (BA).