Por: Phillippe Watanabe
Um novo relatório sobre a destruição provocada pelo garimpo dentro da terra indígena yanomami aponta casos de abusos sexuais, assédios e oferta de bebida alcoólica, além do aumento de desmatamento da Amazônia.
Segundo o documento produzido pela Hutukara Associação Yanomami e pela Associação Wanasseduume Ye'kwana, com assessoria técnica do ISA (Instituto Socioambiental), em 2021, a destruição associada a garimpos cresceu 46% na terra indígena em relação a 2020. A devastação chegou a 3.272 hectares. O monitoramento é feito desde 2018 e esse foi o maior aumento já registrado. Além do crescimento percentual, o garimpo avança sobre novas áreas da terra yanomami.
Para verificar a destruição causada pelo garimpo na terra protegida, foram usadas imagens dos satélites Planet e dos Sentinel 1 e 2. Após isso, a cada seis meses, são feitos sobrevoos para validar as áreas destruídas detectadas.
Em alguns locais da terra indígena, há relatos de abusos sexuais e assédio a mulheres e também a crianças. É o caso dos arredores do rio Apiaú (no curso do qual há um povo isolado voluntariamente, os moxihatëtëma), onde, diz o documento, ocorre frequentemente oferta de bebidas alcoólicas e drogas. O relatório exemplifica uma espécie de relacionamento arranjado entre uma jovem yanomami e um garimpeiro, em troca de mercadorias.
Outro caso citado nas proximidades desse rio é o de um garimpeiro que teria ofertado drogas e bebidas a indígenas e que, quando todos estavam embebedados, estuprou uma criança. A presença de armas entre os garimpeiros faz com que os indígenas não resistam mais aos assédios por medo, dizem os autores.
Também há relatos de exploração sexual de mulheres indígenas nos rios Mucajaí e Couto Magalhães. Esses dois rios, inclusive, estariam entre os mais impactados pelo garimpo ilegal. Além deles, os rios Uraricoera, Parima, Apiaú, Novo, Catrimani e Lobo d'Almada e os igarapés Inajá e Surucucus são os principais corpos d'água que sofrem com a atividade garimpeira.
Os autores indicam que de 110 a 273 comunidades podem ser afetadas pelo garimpo na terra indígena. Isso chega a representar 56% dos que vivem na área ou cerca de 16 mil pessoas.
Com a presença ilegal garimpeira na terra protegida, os indígenas sentem insegurança para circular, "seja em razão de ameaças explícitas de garimpeiros contra suas vidas, seja em razão da simples presença hostil de não indígenas", diz o relatório. O receio, inclusive, impactaria o modo de vida das comunidades, com restrições de caça, pesca, roça e de comunicação com outras comunidades.
O documento ainda cita a crise da saúde na terra indígena, como o aumento dos casos de malária e a desnutrição infantil, situação que ganhou destaque recente com uma foto uma menina yanomami deitada em uma rede e com as costelas expostas.
"A desnutrição infantil é um fenômeno complexo e multicausal, mas no contexto yanomami a influência do garimpo é inequívoca e determinante", afirmam os autores. A presença de garimpeiros na região também dificultaria o acesso dos indígenas aos serviços de saúde.
Entre todos os problemas citados também há menção às crianças yanomamis que foram sugadas e cuspidas por dragas de garimpo enquanto nadavam no rio Uraricoera, que passa pela comunidade Makuxi Yano. Ambas morreram. O caso ocorreu no ano passado.
O relatório aponta ainda algumas recomendações por parte das comunidades, como fiscalização, deflagração de operações regulares de garimpo, bases de proteção etnoambientais em locais estratégicos e a articulação de projetos com alternativas de renda para comunidades próximas a garimpos, o que pode ajudar a neutralizar o assédio, com promessa de dinheiro, de garimpeiros à população local.
Procurado, o Ministério da Justiça disse que a Funai (Fundação Nacional do Índio) deveria ser procurada. A Funai, por sua vez, disse que desconhece o estudo e que não comenta dados extraoficiais.
A instituição também afirma que a "mineração ilegal na Terra Indígena Yanomami é um problema crônico" e que tem cinco bases de proteção etnoambiental na área que fazem a fiscalização e monitoramento.
A Funai responsabiliza gestões anteriores pelo garimpo ilegal e afirma, sem justificar ou apresentar dados, que no passado a política indigenista brasileira era "guiada por interesses escusos, falta de transparência e forte presença de organizações não-governamentais. Um cenário dominado por intermediários, no qual os indígenas eram feitos de massa de manobra, e sobre o qual a imprensa, curiosamente, não se debruça".
O presidente Jair Bolsonaro (PL) defende abertamente mineração em terras indígenas (apesar dos dados sobre a destruição que a prática causa e os riscos aos indígenas), coloca-se contra a demarcação de novas terras indígenas (apesar de essas serem áreas de elevada preservação da Amazônia, por exemplo, e que possuem os menores números de desmatamento) e é crítico de ONGs, tendo feito, inclusive, acusações sem provas sobre queimadas e interferência em dados governamentais contra algumas delas.
O atual presidente da Funai, Marcelo Augusto Xavier da Silva, é delegado da PF (Polícia Federal) tem uma gestão voltada à agenda ruralista e à visão de Bolsonaro. No ano passado, Xavier provocou a abertura de um inquérito pela PF para investigar um procurador federal que atua na própria Funai e que elaborou um parecer jurídico a favor dos indígenas.
Segundo a nota que a Funai enviou à reportagem, atualmente, o problema do garimpo ilegal é agravado pelo aumento do número de garimpeiros venezuelanos. A Funai cita ainda o combate ao garimpo ilegal recentemente pela operação Yanomami, coordenada pelo Ministério da Justiça, que "resultou na inutilização de 22 aeronaves, além da apreensão de outras 89 e fiscalização de 87 pistas de pouso clandestinas na terra indígena". Também cita a operação Curare XIV/Ágata e outras operações de combate ao garimpo ilegal ocorridas em 2021.
"Juntamente com a Secretaria de Operações Integradas/MJSP, [Ministério da Justiça] a Funai tem mantido atuação intensa na repressão a crimes que ocorrem naquela região, de forma articulada e integrada", afirma a nota.