Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

'Levante' corta para Bergamo

Premiado na última edição do Festival de Cannes, o longa 'Levante', de Lillah Halla, foi selecionado para o prestigiado Festival de Bergamo | Foto: Divulgação

Trator estético, capaz de passar por cima de todas as incongruências morais do país e de nossa pontual inércia na recepção de exercícios audiovisuais, "Levante" chegou ao circuito carioca muito bem referendado por prêmios país - e planeta - adentro. Mobiliza plateias ao mesmo tempo que prepara as malas para encarar a competição oficial da maratona italiana Bergamo Film Meeting. O evento começa neste sábado e vai até o dia 17. Sua realizadora, Lillah Halla, vai concorrer por lá com outra produção brasileira: "Até que a Música Pare", de Cristiane Oliveira.

Concorrentes estrangeiros de peso como o belga "The Wall", de Philippe Van Leeuw, e o romeno "Os Bravos Rapazes Vão Ao Paraíso", de Radu Potcoava, estarão em fricção com os títulos aqui do Brasil, onde Lillah vem devorando uma láurea atrás da outra, a começar pelo troféu Redentor de Melhor Direção no Festival do Rio, em outubro. Na sequência, em dezembro, seu debate poético sobre o direito de uma jovem sobre o destino de seu próprio corpo conquistou sete troféus, entre eles o de Melhor Filme, no encerramento do Fest Aruanda, na quarta-feira, em João Pessoa (PB).

Exibido na Semana da Crítica de Cannes, em maio, quando ganhou o Prêmio da Federação Internacional de Imprensa Cinematográfica (Fipresci), o longa-metragem deixou a Paraíba com as láureas de Melhor Atriz (Ayomi Domenica), Atriz Coadjuvante (Loro Bardot), Roteiro (de Lillah e Maria Elena Morán), Som (Waldir Xavier) e Figurino (Nicole Davrieux). Foi agraciado ainda com o prêmio da Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine). Faz pouco, a produção conquistou o Coelho de Ouro no Festival Mix Brasil.

Sempre que a Fipresci concedeu sua láurea (definida como O Prêmio da Crítica) a um longa brasileiro, os caminhos dos títulos vencedores - e das vozes autorais por trás de sua direção - se abriram para o Infinito. Foi o que se viu com "Memórias do Cárcere" (1984), de Nelson Pereira dos Santos (1928-2018) ao ser laureado na Quinzena da Croisette; de "A Febre", de Maya Da-Rin, em Locarno, em 2019; de "Pendular" (2017), de Julia Murat, galardoado em Berlim; e "O Som ao Redor", que levou o mimo em Roterdã, em 2012. "Levante" faz jus a essa tradição. Quem quiser saber o que sua narrativa tem de mais possante pode prestigiá-la hoje, às 14h30 e às 18h50, no Estação NET Botafogo, ou às 21h30, no Espaço Itaú.

O júri escalado para analisar o longa de Lillah em Cannes destacou a forma madura, nada submissa, com que Lillah Halla tratou o tema do aborto em seu longa, que é editado com a fluidez de um trem-bala pela sempre impecável Eva Randolph. Eva ganhou o Redentor de Melhor Montagem na Première Brasil no Rio, há cinco meses.

"Como o cinema tem espaços de poder, é importante mostrar que um objeto como esse filme tem força, na criação de espaços seguros", disse Lillah ao Correio da Manhã, na Croisette.

Egressa do Teatro e formada pela Escuela de San Antonio de Los Baños, em Cuba, Lillah assina a direção apoiada na força da atriz Ayomi Domenica Dias. Junto dela, e de um elenco em fina integração, ela constrói uma trama sobre os dilemas morais mais medievais do país, dissecados a partir do processo de uma jovem atleta que engravida sem desejar e opta por abortar. Mas vai enfrentar resistências por isso.

"Gosto do termo 'militância estética', mas a estética aqui é resultado de um processo que se dá no simbolismo de uma quadra de vôlei, com dois lados se chocando, separados por um limite tênue", diz Lillah, que está decidindo em que festival exibir seu longa este ano, com a promessa de estreá-lo comercialmente em 2024. "É um filme que nasceu de uma estratégia coletiva, absorvendo tudo o que aconteceu no Brasil no período em que seu roteiro foi sendo desenvolvido. Nele, fomos gerando imagens de um futuro possível".

Em seu interesse por títulos em língua portuguesa, a curadoria do Bergamo Film Meeting de 2024 dedica atenções à animação lusitana. Além de uma seleção de curta, o festival promove uma exibição do estonteante desenho "Nayola", de José Miguel Ribeiro, realizador de "A Suspeita" (2000). O filme faz um balanço dos traumas bélicos de Angola. Sua trama segue três gerações de mulheres afetadas pela guerra civil: a avó Lelena, a filha Nayola e a neta Yara. Um segredo doloroso, uma busca imprudente, uma música de combate, um amor suspenso e uma jornada de iniciação: essa é a fórmula do roteiro, que foi aplaudido com ardor no Festival de Annecy, a Meca da estética animada.

 

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