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Rastros de poesia num mundo hostil

Em cena, Renato Livera abre as comportas do inconsciente do premiado autor chileno | Foto: Renato Pagliacci/Divulgação

Novo espetáculo do diretor-dramaturgo e jornalista Luiz Felipe Reis com a sua Cia. Polifônica, "Deserto" estreia nesta quinta-feira (2) no Futuros: Arte e Tecnologia. A dramaturgia ilumina rastros da jornada existencial e artística do premiado poeta e escritor chileno Roberto Bolaño (1953-2003).

Em cena, Renato Livera se aproxima e se abre aos influxos do inconsciente, dos sonhos, da obra e da vida deste fundamental escritor latino-americano. É uma travessia no imaginário de um dos maiores escritores do nosso tempo, e também a primeira dramaturgia original criada a partir da vida-obra de Bolanõ. Resultado de uma extensa pesquisa, "Deserto" acompanha um poeta diante da morte afirmando a vida em criação.

"Toda sua trajetória, e sobretudo seus últimos anos de vida representam, de certa forma, nossa batalha poética-cotidiana no mundo contemporâneo, uma luta contínua contra as forças de morte, de desertificação das subjetividades e de desvitalização do imaginário a que estamos sendo submetidos pelo mundo neoliberal e digital. Sua obra, assim como nossa peça, ao menos esperamos, são contra-cenas que se opõem ao estado desértico a que o mundo ruma, à disseminação irrestrita do horror e das forças de destruição que se alastram e englobam a Terra: violência neoliberal, necropolítica, ecocídio, feminicídios, fascismos e autoritarismos que vicejam em todos os tempos nas Américas e além", observa o diretor Luiz Felipe Reis.

Em seu recorte dramatúrgico, "Deserto" joga luz, sobretudo, nos últimos anos de vida do escritor. Diagnosticado com uma doença hepática degenerativa, em 1992, Bolaño, a partir de então, passa sua última década de vida lidando com uma doença crônica e, de certa forma, silenciosa. Enquanto aguardava um transplante de fígado, se dedicava à conclusão de obras como "2666", sua obra-prima final, publicada um ano após a sua morte.

O que acompanhamos em "Deserto", porém, não é exatamente a vida particular de Bolaño, mas fragmentos da sua memória, de seus poemas e escritos diversos que iluminam a jornada arquetípica de um poeta e escritor latino-americano imigrante - nascido no Chile - que atravessa o continente rumo ao México e que, posteriormente, fixa-se na Espanha.

"Deserto é a recomposição de rastros dessa aventura. A travessia de um espírito inquieto marcado pela inconformidade com as normas, pelo desejo de ruptura, e que, então, se relaciona de modo muito particular com o exílio, com o desamparo e com o "deserto do real" de um mundo globalmente colonizado e dominando pelo imperativo do lucro, da utilidade e da eficácia a serviço do capital - como resposta ao horror e a aridez do real, Bolaño reafirma continuamente uma relação inseparável com a criação artística. Sua obra e sua vida são afirmações de uma ética de existência: a aventura poética como uma forma de vida, como uma forma de escapar e de se contrapor ao nomos e ao ethos - conjunto de normas e hábitos - impostos pelo regime totalitário do capital em sua forma contemporânea, neoliberal, marcada pela financeirização de tudo", explica Luiz Felipe Reis.

"Bolaño não é um autor explicitamente autobiográfico, ou que trabalhou com uma forma de autoficção explícita, é mais como se deixasse rastros e pistas - verdadeiras e falsas - sobre sua vida através da sua vasta obra ficcional e poética. Em nosso processo, mergulhamos em sua obra ficcional e não ficcional - romances, contos, conferências, poemas, entrevistas, ensaios - a fim de construir uma dramaturgia original que ecoa as suas mais fundamentais e recorrentes inquietações artísticas e existenciais", diz o diretor.

Bolanõ surge para o mundo literário em meados dos anos 1990, celebra seu primeiro grande sucesso em 1998, com "Os detetives selvagens", mas cinco anos depois morre. "É uma aventura trágica, em certa medida, mas que tem a contraparte disso que é o sujeito que, diante da morte e do desconhecido, investe todas as suas energias na criação, que afirma até o fim a criação poética como uma forma de vida, como uma aventura existencial. A obra do Bolaño é um dispositivo que nos ajuda a refletir sobre a condição de ser poeta, artista e escritor nesse mundo em vias de se tornar um deserto", reflete Luiz Felipe Reis.

O espetáculo instaura uma experiência multilinguagem, articulando dispositivos teatrais com a literatura, a poesia, a música, além de instalações de luz, som e vídeo, se empenhando, em articular reflexões filosóficas com provocações sensoriais a fim de sensibilizar e de engajar todos os envolvidos na experiência, na tarefa de responder criativamente às transformações e às ameaças existenciais que marcam o contemporâneo.

"Se vivemos num mundo cada vez mais avesso e hostil a uma vida poética, não submetida e pactuada com a lógica do lucro sobre tudo e a qualquer custo, aquele que se aventura a viver poeticamente, a existir enquanto artista e poeta no mundo, está fadado a viver um périplo acidentado, marcado por inúmeras formas de violência que atuam determinadas a produzir a sua desistência, ou des-existência. Por tudo isso, é preciso continuar", conclui Luiz Felipe Reis.

SERVIÇO

DESERTO

Futuros - Arte e Tecnologia (Rua Dois de Dezembro, 63, Flamengo)

De 2/5 a 23/6, de quinta a domingo (20h)

Ingressos: R$ 60 e R$ 30 (meia)