Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Notas sobre Roberto de Regina, o ás do cravo

Referência do cravo no Brasil, o maestro Roberto de Regina é tema de documentário. Aos 97 anos, o músico tem memória invejável a ponto de executar peças de J. S. Bach sem o uso de partituras | Foto: Divulgação

Entidade musical brasileira num instrumento de fino trato, o cravo, Roberto de Regina chegou aos 97 anos sob os holofotes do cinema. O filme "O Cravista", de Luiz Eduardo Ozório, mapeia sua vida e seus feitos, retratando como sua obra reintroduziu a música da antiguidade no país, chegando a ter cerca de 25 álbuns e cinco DVDs gravados. Em 1974, ele fundou a Camerata Antiqua de Curitiba, e, em 2023, recebeu o título de Honoris Causa pela Academia Brasileira de Belas Artes. Médico anestesista, De Regina construiu a Capela Magdalena, em Guaratiba, nos moldes dos castelos europeus, transportando toda a atmosfera do século XVIII para os dias atuais. Além de músico, pintor, artesão e luthier, montou cerca de 500 maquetes e miniaturas exibidas em seu museu particular.

A trajetória dessa lenda viva da música barroca brasileira alimenta um documentário que fala sobre arte e sobre e tempo, com direção e roteiro de Ozório, produzido pela OZ FILMS, com apoio da Youle Locação, Luz Rio, Cesgranrio e Casa Julieta de Serpa. Já em fase de finalização, o longa encerrou suas filmagens reproduzindo um baile Real da monarquia. Na sequência, dançarinos e músicos especializados no século 18 compõem a atmosfera, coreografados pelo Professor da UFF Mário Orlando, com os figurinos de Rogério Madruga.

Como você avalia a expressão poética de Roberto de Regina e como você analisa a devoção dele à música?

Luiz Eduardo Ozório: Roberto de Regina dedicou sua vida inteira à música clássica, com especial ênfase na música antiga, abrangendo o Renascimento e o Barroco. Mesmo enfrentando uma pausa de três décadas em sua carreira artística, para seguir a Medicina, por uma exigência de seu pai, Roberto nunca se desligou da sua paixão pela música. Após se aposentar, ele se voltou completamente para o estudo e a prática da música antiga, o que ele considerava a verdadeira expressão de sua devoção. Sua paixão também se estendeu à ressurreição do cravo, um instrumento considerado obsoleto e predominantemente europeu, cujo custo de importação era proibitivo. Roberto aprendeu a arte de construir cravos em uma marcenaria especializada em Boston, onde dominou todos os aspectos da construção do instrumento. Ele se tornou o pioneiro na construção de cravos no Brasil, satisfazendo a demanda de muitos músicos ávidos por aprender a tocar este instrumento. Através de seu trabalho e dedicação, Roberto deixou um legado duradouro para novas gerações de músicos, demonstrando que a expressão poética permeia toda a sua obra. Em cada nota tocada em um cravo construído por suas mãos, ecoa sua profunda paixão pela música.

Que espaço existe para o cravo nos holofotes da produção musical brasileira hoje?

Graças ao esforço incansável do maestro Roberto de Regina ao longo de décadas, hoje o cenário para a música clássica é consideravelmente mais amplo. No entanto, esse gênero ainda enfrenta limitadas oportunidades, especialmente em um país onde a música clássica raramente recebeu o incentivo necessário como forma de educação e cultura. O Rio de Janeiro, cidade natal do maestro, não ofereceu o suporte adequado para o desenvolvimento de sua carreira artística. Em contrapartida, Curitiba acolheu Roberto de Regina com entusiasmo, e foi lá que, em 1974, ele e outros músicos fundaram a Camerata Antíqua de Curitiba, transformando a cidade em um centro de referência para a música antiga no Brasil, promovendo turnês internacionais. O projeto, ao qual ele se dedicou por mais de 30 anos, continua vivo e influente até hoje.

Que descobertas sobre a vida, sobre música e sobre a arte de envelhecer você fez no corpo a corpo com o cravista?

Essa é realmente uma pergunta intrigante, pois embora o filme narre a trajetória do artista Roberto de Regina, ele vai além, explorando as histórias que moldam o artista por trás das cortinas. Convivo com Roberto desde 2011/2012, e ao longo desses anos, tive o privilégio de conhecê-lo intimamente. Estabelecemos uma amizade sólida, marcada por grande confiança mútua. Durante esse tempo, o que mais me admira nele, além de sua versatilidade artística, é seu compromisso diário com a arte. Ele se dedica a ensaios exaustivos ao cravo, persistindo incansavelmente, apesar do escasso (ou nenhum) apoio governamental e das adversidades. Nesse período, também testemunhei seu processo de envelhecimento e observei como ele desafia o tempo, mantendo-se ativo para continuar tocando Bach de memória, sem partituras e sem o auxílio de óculos. A equipe de filmagem que o acompanhou era surpreendida constantemente por sua vitalidade, observando-o realizar de duas a quatro apresentações por semana. Roberto é um verdadeiro exemplo de como enfrentar o envelhecimento com energia e uma visão positiva da vida.

Que descobertas a troca com a música gera?

Decidir fazer um filme sobre música antiga exigiu um mergulho profundo nos períodos renascentista e barroco, este último especialmente enfocado nos últimos anos de dedicação do maestro. Estávamos contando a história de um artista multifacetado que, além de músico, tornou-se pintor, luthier e um expert em maquetes e miniaturas, chegando a montar seu próprio museu com mais de 500 peças. Era fundamental explorar profundamente a mente de um homem capaz de realizar tantas façanhas. Roberto, se considerando um "autoexilado", ao longo dos anos, criou seu mundo particular na Capela Magdalena, em Guaratiba, no Rio. Lá, ele esculpiu os ambientes ao estilo do século XVII, com jardins que remetem a Versailles, uma casa em forma de castelo e uma sala de concertos que parece mais um santuário. Ele se apresenta vestido em trajes barrocos à luz de velas, e o filme adotou essa mesma visão, entrando na mente de alguém que claramente vivia no século XVIII. Para capturar essa essência, as cenas internas foram filmadas predominantemente à luz de velas, trazendo para o público um verdadeiro portal do tempo.